Tencionava ir dar uma volta de bicicleta por Roma, mas os italianos da minha mesa do pequeno-almoço desataram todos a dizer "it's crâisi, it's crâisi!", e que Roma tem muitas colinas, e que os condutores de carro são loucos (por acaso, em termos de loucura os motociclistas ultrapassam os automobilistas largamente pela direita, e pelo meio, e por cima, e por onde calhar - esses sim, são mesmo crâisi, crâisi).
De modo que optei pelo plano B: um bilhete de autocarro turístico para entrar e sair onde apetecer.
Aviso já: desarrisquem. Não vale nada. Aquele percurso de Roma pode ser perfeitamente palmilhado a pé. Além disso, o guia áudio nem sempre correspondia ao que estávamos a ver, e invariavelmente ainda estava a falar quando já tínhamos de sair. Como se não fosse suficientemente mau, dizia-me que se pode ver isto e aquilo nesta e naquela igreja, mas não avisa que as igrejas têm horários esquisitíssimos. Ao fim da segunda igreja fechada, zanguei-me com o plano B. E foi mais ou menos no momento em que o Joachim me telefonou a dizer que o congresso tinha acabado, e estava livre para vir ter comigo. De modo que visitámos a pé e com toda a calma a maior parte dos lugares aonde o autocarro me teria levado.
Mas isso foi da parte da tarde. Antes, muito antes, logo ao princípio da manhã, andei por Termini (estação de arquitectura fascinante!) à procura do malfadado autocarro. Informações fiáveis? Ah, isso é que era bom. Mais parecia o "Domínio dos Deuses" do Astérix. Não é aqui, é no segundo andar. Aqui? Que ideia! Linha 1. Nã, nós só damos informações sobre os comboios - vá à linha 31. Etc.
O autocarro ficava afinal fora da estação, é já ali à frente - disseram-me. É já ali, meio quilómetro mais à frente...
E não tinham o percurso combinado com barco.
Paciência. Entrei, e saí quase a seguir, no Coliseu. Queria tentar encontrar a Domus Aurea. Da última vez que estivemos em Roma, andámos, andámos, andámos, e em vez da Domus Aurea fomos ter às termas de Caracala; desta vez, saí no Coliseu e andei, andei, andei, e finalmente encontrei a entrada - fechada para obras!
Paciência. O Moisés de Miguel Ângelo fica mesmo ao lado, lá subi a colina. A igreja (San Pietro in Vincoli) estava... - um doce a quem adivinhar - ...fechada.
Continuei a subir, passei uma rua pelas traseiras de palácios e parques, onde se viam muitos homens novos, mas nem mulheres nem turistas. Comecei a achar o ambiente estranho, mas já era demasiado tarde para esconder a máquina fotográfica e para fazer de conta que sou una mamma italiana. Felizmente não aconteceu nada. Das duas, uma: ou os italianos não são como a fama que têm, ou Deus existe. Acho a segunda hipótese mais provável.
Apanhei de novo o autocarro, saí perto da ilha Tiberina.
Atravessar uma ponte para chegar à ilha é um acto de coragem. O Tibre, belíssimo no seu verde leitoso, espalhando à sua volta uma suave luz de alabastro, não é o Tibre. Só pode ser o outro, o Lete, mítico rio do esquecimento.
E foi assim que me esqueci de todos os planos que tinha para o dia, e fui ficando por ali, entre Trastevere e a antiga Judiaria, até que o telefonema do Joachim me trouxe de volta à realidade.
Encontrámo-nos no Vaticano, mas não entrámos na basílica de São Pedro. Já sabíamos o que nos esperava: hordas de turistas a fotografar em vez de olhar, e a maior concentração geográfica do pecado da Igreja - as amantes de um Papa feitas virtude de mármore no túmulo deste, "o meu túmulo é mais majestoso que o teu", o bronze dos romanos arrancado ao Panteão e derretido para fazer as colunas do baldaquim do altar papal...
Além disso, o sol chamava por nós. Depois do longo Inverno de Berlim, parecia um milagre.
Numa esquina de Campo di Fiori fomos à padaria maravilhosa onde o Joachim costumava ser cliente quando morava junto àquela praça, e comprámos uma tarte pequena, feita de arroz doce. Uma delícia.
No meio da praça, o Giordano Bruno olhava desconsolado para a lixeira que o mercado do dia lá deixara.
Seguimos para a praça Navona, cheia de músicos e vendedores de castanhas e (adivinharam!) demasiados turistas. Deliciamo-nos mais uma vez com a belíssima forma da praça, aproveitando o traço de um antigo circo romano. Fomos verificar sob as casas da praça Tor di Sanguigna se ainda lá estavam os restos das tribunas do circo - ainda lá estão. E rimo-nos de novo com as figuras do fontanário no centro da praça, sinais da eterna disputa entre os egos de Bernini e de Borromini. Mas não entrámos na igreja de Santa Agnes (ironicamente, a igreja dedicada à padroeira da castidade foi construída no espaço anteriormente ocupado por um bordel), com um projecto de Borromini que recuperava em parte o sonho de Miguel Ângelo para a basílica de São Pedro. Da próxima vez, entraremos. Se não estiver fechada.
Em frente ao Panteão havia uma fila enorme de turistas que queriam entrar. Optámos por ir tomar um granita di caffe con panna no Tazza d'Oro, numa ruela ali perto. Depois passeámos pela Via dei Cestari para mostrar ao Joachim as lojas de prêt-a-porter eclesial, mas infelizmente tinham tirado da montra a lingerie para freiras. E eu a pensar que em Roma tudo é eterno...
Logo a seguir fica a Igreja de São Luís dos Franceses, com o amigo Caravaggio. Para iluminar os seus três quadros num altar lateral, é preciso deitar uma moedinha na máquina automática. Quando as luzes se apagam, é muito engraçado observar na semi-penumbra as reacções dos turistas: quem será o papalvo que vai pagar para todos?
Dos três, o meu preferido é a "Vocação de São Mateus": a gestão da luz, o dedo de Cristo sob a janela que desenha a cruz, cortando o espaço vazio entre os que acabaram de entrar e os sentados à mesa. E tudo tem a ver connosco e nos interpela: os ajudantes do cobrador de impostos continuam a contar o dinheirinho, alheios ao momento; a roupa rica que usam, típica da época em que o quadro foi feito, enquanto Jesus e Pedro estão descalços e com os eternos mantos e túnicas; o gesto na mão de Mateus, "quem, eu?!", que bem podia ser o meu, bem podia ser o de Moisés ("mas se eu até sou gago...") .
Regressámos ao hotel passando pela Fontana di Trevi, mas devem tê-la levado para outro lado, porque na praça habitual só conseguimos ver turistas.
E depois foi o jantar de gala do congresso, numa sala com terraço e jardim, e uma vista magnífica sobre Roma, e com uma banda musical que cedeu o lugar aos participantes: ora o professor doutor Fulano ("com mais de duzentas publicações", dizia-me o Joachim) a tocar furiosamente bateria, ora o director de um hospital de Roma a cantar uma canção composta por ele e pelo seu amigo Lennon...
Gostei de ver que as sumidades também têm uma vida interessante para além das publicações e dos jogos de poder, e gostei especialmente do à-vontade com que se expunham.
O Joachim chamou-me a atenção para os sapatos de uma amiga, que tinham a sola vermelha. "Sola vermelha? São Louboutin!", disse eu logo, percebendo finalmente para que me serve perder tempo nos blogues das fúteis. Dias mais tarde, em casa, contámos à Christina que a sua idolatrada Norma tinha sapatos com sola vermelha, e ela exclamou: "Louboutin?!" - mas como é que ela sabe, se não lê blogues das fúteis?
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Para o caso de alguém estar a ler isto com caderninho de notas "o que fazer em Roma", aqui vai uma descrição mais adequada: gelados em Roma.
4 comentários:
Para primeiro dia não está mal. A quantos posts mais temos direito?
Eu quando voltar a Roma hei-de alugar uma lambreta. Isso, sim. Mas tem de ter uma buzina a funcionar como deve ser. Não é em Roma que quem mais buzina melhor se safa? Do género "a minha buzina apita mais que a tua"?
Em princípio, temos direito a mais dois posts: foram três dias. Mas começo a ficar desesperada: amanhã saio para França, e anda aí um chato a insistir comigo para saber como é que se traduz "und". ;-)
No entretanto tenho mais um ou dois no prelo, sobre outros assuntos.
É um stress terrível.
E ainda não escolhi que sapatos hei-de levar para a Borgonha!
OK, podes alugar uma lambreta e buzinar como um turista a fazer de conta que é romano. Mas se me atropelas, ai, se me atropelas, de vingança nunca mais te digo como é que se traduz "und". ;-)
Já que em Roma foste um pouquinho romana, embrenha-te agora nas delícias de Borgonha e do borgonha.
Aproveito para desejar a todos um descanso retemperador, augurando também uma Páscoa festiva que vos proporcione ocasiões de deslumbramento perante o milagre da vida nos seus detalhes quotidianos.
Um abraço muito caloroso.
Obrigada, Manuel António!
Uma boa Páscoa também para vocês.
Antes de sair, vou recuperar para a primeira página o texto que escreveste há dias. Porque merece ficar a iluminar o blogue nos dias desta Páscoa.
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