18 fevereiro 2010

quarta-feira de cinzas dos artistas

O convite para a "Quarta-Feira de Cinzas dos Artistas" era bastante conciso:
- 18:00: celebração ecuménica na Igreja de S.Mateus, no Kulturforum
- seguida de uma recepção na Gemäldegalerie

Fomos. Com alguma curiosidade, preparados para participar em algo que antevíamos especial.
Quando chegámos a igreja já estava cheia, pelo que tivemos de subir para a galeria lateral. Também aí já todas as cadeiras estavam ocupadas, mas havia ainda muitos degraus livres.

A celebração começou com toda a dignidade.
Música contemporânea interpretada com excelência.
Para a entrada, escolheram de uma oratória de Thomas Daniel Schlee uma peça para barítono, trompeta e órgão, inspirada no segundo capítulo do Eclesiastes.
Detesto a vida, pois vejo que a obra que se faz debaixo do sol me desagrada: tudo é vaidade e correr atrás do vento
.
Procissão com o arcebispo, o bispo evangélico, pastores e padres. Cântico ecuménico. Alguns textos e orações, e de novo música contemporânea.
Sentámo-nos no degrau, em repouso e recolhimento, ouvindo a peça musical.
Repentinamente, a música foi cortada por uma voz em tom profético. Levantei-me, curiosa, e vi:
no centro do altar o pastor conversava com um homem nu que mexia com insistência no seu pénis. As calças estavam caídas sobre os pés, o casaco pousado ao seu lado.

Pensei:
estes artistas de Berlim são demais! Será uma encenação de Hans Neuenfels?

Avisei o Joachim para ver também, e corrigi o impulso de avisar o Matthias, que continuou sentado e meio zangado com aquela seca monumental de cultura e religião.

Pensei:
mas que grande ideia para Quarta-Feira de Cinzas! Que bela maneira de expressar o niilismo do momento entre o fim do Carnaval e o início da Quaresma.

Confesso que aquela manipulação genital me parecia um pouco excessiva, mas lembrei-me que estávamos em Berlim, numa celebração ecuménica de artistas.
E então o Joachim disse-me a rir:
acho que isto não estava planeado.

O pastor continuava a falar com o homem. Os músicos continuavam a interpretar o salmo 73, peça de Stefan Johannes Hanke para barítono, clarinete baixo, trombone e percussão, composta por encomenda da Fundação Guardini para uma celebração ecuménica naquela igreja em 24 de Abril de 2009.

Olhei para a assembleia. Lembrei-me de um post que apareceu no Quase em Português sobre a cara das pessoas que, numa celebração sobre "erotismo e fé", ou algo semelhante, assistiam a um bailado no corredor da nave principal. A fotografia que o Lutz mostrara tinha rostos impávidos e serenos perante a bailarina que se pretendia em exercício de erotismo.
Também ali as pessoas permaneciam impávidas. Muitas ouviam a música com os olhos fechados, sem sequer se darem conta do que estava a acontecer.

Por fim, o homem vestiu-se, desceu do altar e saiu da igreja.
Pensei:
vou escrever um post sobre o poder da palavra. Tenho de contar sobre este pastor que consegue persuadir alguém a mudar o seu comportamento, sem precisar de recorrer à violência ou à ameaça.

A celebração continuou normalmente. O Joachim contou ao Matthias que no altar tinha aparecido um homem nu, e o miúdo não acreditou. Estás a gozar comigo?, perguntou ele com cara de quem está a pensar que é um grande azar ser filho de um pai que se acha tão engraçadinho.

Sentámo-nos de novo para ouvir a homilia, feita pelo arcebispo. Sobre a arte e a fé, Deus que vibra nas mãos do artista, o artista que procura Deus, etc.
Estou a inventar, porque não ouvi praticamente nada das frases difíceis que ele dizia em tom monocórdico.

E então o homem regressou. Vinha completamente nu e descalço, percorreu o corredor central até ao altar, e o bispo evangélico foi de novo ter com ele. Avisei o Joachim, e desta vez também o Matthias, que nem queria acreditar no que via. O arcebispo continuou a homilia

- podia agora fazer umas gracinhas sobre a Igreja Católica que continua imperturbável o seu rígido discurso, independentemente das manifestações de vivência da sexualidade que a seu lado ocorrem, mas o melhor é não rir muito alto porque se eu estivesse no lugar do arcebispo também não teria sabido como reagir -

o bispo tentava convencer o homem a ir-se embora, o que, manifestamente, nem lhe passava pela cabeça. Argumentava com o arcebispo em altos brados, cortava-lhe a palavra. O arcebispo olhava para as suas folhas e tentava retomar o fio da homilia, e o homem que não, que não, que isto e que aquilo, e bracejava furibundo.

Por essa altura já praticamente toda a gente se ria.
O arcebispo fez voz grossa e disse ao homem: já todos compreendemos a sua mensagem, agora faça o favor de sair da igreja.
Isso é que era bom.
Um homem jovem, junto à porta, gritou para o altar: "Deixem-no falar! Nós ainda não compreendemos a mensagem!", e ria, ria. Artistas berlinenses...

O bispo veio ao microfone sugerir que a assembleia cantasse o cântico previsto para depois da homilia, e lá fomos nós. Há muitos anos que não via numa igreja pessoas a cantar com sorrisos tão rasgados.
Alguém da organização levou para o altar a roupa do homem, que se vestiu e abandonou finalmente a igreja. Fecharam as portas à chave, e deixaram mulheres a guardá-las.

Podia ainda contar que o resto da celebração decorreu sem qualquer imprevisto, e que a música continuou excelente, e que nunca mais vimos o homem. Desconfio, contudo, que esta parte já não interessa a ninguém. Esta sociedade da comunicação vertiginosa...

Na Gemäldegalerie, Ingo Metzmacher, director artístico e maestro da Deutsche Symphonie-Orchester de Berlim, fez o "discurso do artista", falando sobre Deus e a Música. Ou a Música e Deus, como ele corrigiu logo no início. Dava um bom par com o arcebispo. Quando começou a falar do número de vibrações por segundo que ocorrem no átomo do elemento não sei quê, desliguei, e comecei a reparar numa mulher que andava pela sala com ar de perdida, pobremente vestida e com um saco de supermercado. Seria a irmã mais nova do outro?
Depois Ingo Metzmacher acabou o seu discurso, foi muito aplaudido, o arcebispo deu-lhe um presente, e serviram-nos o copo de água. Literalmente: um copo de água. E algumas fatias de pão.

Para que não pensem que eu vos estou a enganar, como o Matthias pensou, ó pra isto:



E mais uma foto, feita à porta da Gemäldegalerie. A imagem não está muito boa, mas mostra uma descoberta que fiz ontem: a cúpula de vidro do Sony Center faz um belo eco visual do edifício da Filarmonia.



Errata: não era arcebispo, era cardeal. Não é que adiante ou atrase muito à história, mas é a verdade.

13 comentários:

Rita Maria disse...

És demais! As coisas que eu perco...
(pode-se tirar fotografias na missa?)

Helena Araújo disse...

Pois, Rita.
Se eu soubesse que ia ser assim, tinha insistido contigo.
Havia lá muitos fotógrafos e jornalistas. Eu pensei "mais uma, menos uma". Mas não tive coragem de fazer a fotografia, pedi ao Joachim.

Rita Maria disse...

Ahahaha, gosto tanto de ti :)

lb disse...

Obrigado pelo aviso! Mas fizeste me ter muita pena de já não viver em Berlim...

Helena Araújo disse...

Olá Lutz,
vá, reconhece que mesmo que morasses em Berlim não ias a uma celebração ecuménica de quarta-feira de cinzas...
Deus compensa os que lhe são fiéis!
;-)

Paulo disse...

Esta história só podia acontecer numa igreja aquecida em Berlim. Imagine-se alguém a tentar tirar a roupa na Sé de Lisboa. Antes que Don José Policarpo interviesse já o nu teria caído enregelado.

Helena Araújo disse...

Creio bem que a esta hora bispos e arcebispos estão mais do que arrependidos do dinheiro que se gasta para aquecer as igrejas...

Paulo disse...

Não sei... sem aquecimento nas igrejas alemãs, acho que nem os fiéis encasacados assistiriam à função.

Helena Araújo disse...

Oh, homem de pouca Fé!
Pois não vistes ainda como somos resistentes?
Capazes até de afrontar, destemidos, peças encomendadas em 2009 pela Fundação Guardini!

Cinco graus, ou algo do género, dentro de uma igreja não é nada que nos abale a Fé, a Esperança e a Caridade! Além disso, são permitidos gorros dentro das igrejas.

Paulo disse...

Essa parte dos gorros deixa-me muito mais descansado.

Rita Maria disse...

E máquinas fotográficas! Eu, se me derem uma para as maos, fico ali entretida e nao incomodo ninguém...

Helena Araújo disse...

Rita,
como és minha amiga, vou-te revelar um segredo: olha que isto não acontece sempre que eu vou à missa!

E pronto, lá se me acabou uma promissora carreira de angariadora de fiéis. Porque é que eu não sei ficar calada?

Catarina disse...

Não creio que seja uma ocorrência muito frequente numa igreja!!!! Se fosse num estádio durante um evento desportivo!.... Gostei do seu relato. : )