15 fevereiro 2010

eu hoje feita polícia de costumes

Confesso que a última coisa que esperava de um famoso escritor português (não digo qual, não é isso que está aqui em causa) era que destratasse a língua alemã desta maneira:

Paulo: nur diejenigen die deutsche Zeitungen lesen ist eine Person ganz zufrieden.


O autor quereria fazer uma gracinha para dizer "só quem lê jornais alemães é uma pessoa inteiramente feliz", mas o resultado (tentando traduzir o intraduzível) é:

Paulo: apenas aqueles os jornais alemães lêem é uma pessoa bastante satisfeita.

***

Durante alguns anos trabalhei numa equipe de tradução onde havia o hábito de, na comunicação oral, misturar português com alemão à vontade da preguiça.
Um dos colegas fazia questão de não entrar nessa dinâmica. Entendia ser aquele um péssimo hábito, porque as pessoas acabam a perder agilidade em ambos os idiomas, além do desrespeito que representa para cada um deles.
Enfiei discretamente o barrete, e tratei de mudar de vida. No fundo, era o meu brio profissional que estava em causa.

Por essa altura ficou também famoso um debate entre tradutores: devemos traduzir depressa, mal e barato, como exigem as políticas empresariais de contenção de custos daqueles que nos pagam? Devemos aceitar trair a nossa língua? Ou devemos continuar a fazer questão de traduzir o melhor possível, o que implica um preço mais alto, o que implica perder os clientes?
Esta questão continua em aberto, e é cada vez mais premente: a tradução automática, a tradução apressada e sem revisor, os jornais sem departamento de revisão, os livros publicados sabe-se lá como...
Onde foi parar o respeito pela língua?

Por isso me surpreende o paradoxo de um escritor tratar tão mal uma língua - mesmo não sendo a sua, mesmo sendo no espaço algo volátil de um blogue.

13 comentários:

Rita Maria disse...

Lista de leitores horríveis e que nao partilham os teus bons sentimenros e foram logo ver quem era:
1. Rita Maria

Rachelet disse...

Infelizmente, a questão qualidade/preço baixo é um dilema e nem deveria ser colocado sequer, mas há que sobreviver num mercado onde cada vez mais qualquer bicho com 2 anos de Cambridge acha que pode traduzir de/para inglês e a preços da chuva.

Havia de ser bonito que eu, lá porque tive aulas de Electrotecnica (e só porque já não havia mais vagas em Práticas Administrativas) no 9.º ano, me pusesse a mexer em instalações eléctricas! Ou lá porque tive um módulo de Saúde, andasse por aí a exercer Medicina.

Eu continuo a não me comprometer - talvez porque o segmento da tradução técnica ainda valoriza, por enquanto, o rigor. Mas trata-se da sobrevivência de toda uma classe.

Catarina disse...

Talvez esse senhor estivesse tão seguro dos seus conhecimentos linguísticos que nem se deu ao trabalho de pedir a opinião de outrém. : )
Os ingleses têm uma expressão que usam bastante: “You get what you paid for.” E, de facto, em termos de tradutores há os bons e os ... menos bons! Lê-se com cada “calinada” que é de arrepiar. Deverá ser o tal brio que falta... ou uma competência que não foi devidamente desenvolvida.
Boa semana!

Helena Araújo disse...

Rita,
és muito má! Se a io sabe, era uma vez um empadão... ;-)

Não é uma questão de ter bons sentimentos. É porque o que me interessa é mesmo o episódio - alguém publicar uma frase de tradução automática sem ser para se rir -, e de modo algum a pessoa que o fez.
E o que menos me interessa é que este assunto seja fulanizado.

Já agora: gostaste da minha tradução? :-)

Rachelet,
nem todos valorizam o rigor, infelizmente.
E a tradução literária? O que me admira é que ainda sejam tão boas apesar do preço que se paga.
Outro dia soube dos preços no mercado alemão, e assustei-me. Aquilo não é preço de emprego, mais parece terapia ocupacional.

Catarina,
acho que foi simplesmente uma gracinha rápida feita com tradução automática.
"You get what you paid for" também é um bom ponto de partida para a análise: como consumidores, queremos tudo o mais barato possível. Será que nos podemos queixar da qualidade do barato que compramos?

Rita Maria disse...

Eu, depois de ser a única, vou ficar aqui muito caladinha...

PS: Tenho uma amiga tradutora aqui em Berlim que vive disso, mas diz que se estiveres certificada ainda ganhas mais e, nesse caso, bastante bem...
PPS: Mas um dia podíamos dedicar-nos à falta em Portugal de todos os clássicos da literatura infantil e ficar ricas (talvez só de gratidao, mas chegava).
PPPS: Acho que isto mudava se as pessoas se começassem a levar mais a sério e, ao preço a que se vendem livros em Portugal, deviam. Eu, se as Benevolentes que tenho fossem mesmo minhas, tinha-as devolvido e exigido o dinheiro de volta devido à pobbreza da traduçao.

Helena Araújo disse...

Rita,
tu não te basta andares a ler o Proust, ainda por cima tens as Benevolentes?
Pões-te com esses masoquismos, um dia destes ainda começas a ler o Harry Potter (acho que são umas 6000 páginas ao todo).
;-)

Literatura infantil, pois!
Uma das coisas mais difíceis de traduzir.
Sabes que havia uma tradução muito boa dos livros do Emílio (em alemão, Michel) da Astrid Lindgren, e que desapareceu do mercado português? Não entendo. Juro que não entendo.

Adoro os livros infantis suecos.
Mas fico desconfiada: aqueles pais não existem...

io disse...

2. Io

[empadão garantido, Rita]

Helena Araújo disse...

Vocês são terríveis.
Mas eu também, quem me mandou escrever o post assim?
Já pareço o Lutz uma vez a protestar sobre certas fotos que aparecem no "google imagens", e a dizer que não há o direito de fotografar uma mulher nua quando ela pensa que está a salvo, e a dizer que por causa disso não põe o link para a foto - e a dizer de que é que andava à procura quando encontrou aquilo...

Teresa disse...

Helena,
Li esta entrada mal foi publicada. Até a recomendei.

No meu mundo perfeito um bom tradutor é aquele que conhece a fundo a língua da qual traduz e consegue traduzir com elegância, fluidez e correcção na língua para a qual traduz. O que implica, entre outras coisas, sem erros ortográficos grosseiros como li nos comentários acima (não vou denunciar). Isto é só a revisora atávica que há em mim e, por prudência, pede sempre o original estrangeiro. Que isto de ler "grão de beleza" na tradução, para vir a descobrir (duh!) que no original era "grain de beauté", caleja-nos. Mas muito mais poderia contar.

Teresa disse...

P.S. Já agora, e porque me parece que estou entre tradutores, conto a história curiosa. Há uns bons anos, a Bertrand encomendou-me uma revisão, que me pagou a preços de tradução. O editor intuiu logo que aquilo estava tão mau que me pediu para mexer na tradução.
Deu-me o triplo do tabalho, o dinheiro recebido nem compensou, que alturas há em que mexer no que está mal feito é mais penoso do que construir de raiz. Mas lembro com enorme vontade de rir "peru frio" como tradução para "cold turkey".

Helena Araújo disse...

Teresa,
essa é demais, fartei-me de rir: toda a gente sabe que "cold turkey" se traduz para "vaca fria"!
;-)

Então tu és tradutora?
Uma amiga minha, grande tradutora, achava que as traduções se devem fazer sempre a quatro mãos: alguém que tem a língua original como língua materna faz a tradução, e alguém que tem como língua materna a de destino faz a retradução. Assim, tem-se a certeza que os significados na língua original foram entendidos, e que foram bem traduzidos para a língua de destino.
Mas pagar uma tradução duas vezes? Ah, isso é que era bom!

(espero que os erros ortográficos não tenham sido meus)

E, já que estou a falar com uma grande especialista: burqa, burka, burqua, burca, burqha, ou quê?

Paulo disse...

3. Paulo. Não aquele, mas o outro, que também não se aguentou sem ir à pergunta.

Helena Araújo disse...

E então, ó "fossangueiros" 1., 2. e 3. - descobriram alguma coisa que valesse a pena?

Paulo, diz à tua pomba que tem de se esforçar mais com a tradução automática, ou então que trate de reinvestir nas línguas de fogo. Diz-lhe que com este arremedo de meias-tintas de que actualmente dispomos não se consegue converter gentios.