Maria N.,
ia escrever um comentário ao teu post, mas rapidamente me apercebi que é melhor comentar aqui. Vou tentar - uma vez na vida - ser sintética:
A proibição da burqa em alguns locais por motivos de segurança (concretamente: pode esconder uma bomba, uma arma ou um criminoso procurado pela Polícia) acaba por resolver o problema sem ser necessário discutir. Se uma pessoa com véu integral não se pode aproximar a menos de (digamos) dez metros de um banco, uma escola ou um jardim infantil e, de um modo geral, de qualquer edifício público, se não pode andar nos transportes públicos, e se autorizamos os donos das lojas a pôr um cartaz à porta, "por motivos de segurança não se permitem burqas neste estabelecimento", então, na vida real, é praticamente impossível a essa pessoa andar na rua.
Deixando de lado esta maneira fácil de fugir ao debate, falemos da proibição total - mas apenas na Europa.
1. "É dizer que a proibição as faz menos iguais porque as torna únicas em não poderem vestir o que querem."
Na nossa sociedade, todos estão sujeitos a certos códigos de vestuário. O mais óbvio: é proibido andar nu na via pública. E na Alemanha há de facto uma lei que proíbe as pessoas de andarem com a cara tapada. O que me espanta no momento actual alemão é que abram uma excepção para as mulheres que usam burqa - como se, por uma espécie de má consciência ou medo, se recusasse às mulheres muçulmanas a igualdade perante a lei: ninguém pode esconder o rosto na via pública, mas elas podem.
Desse modo, esta excepção ao cumprimento da lei faz delas - exactamente ao contrário do que dizes - as únicas pessoas que podem vestir o que querem. A proibição põe-nas em igualdade de circunstâncias com os outros cidadãos.
Há aqui uma distinção importante a fazer: trata-se da proibição de usar uma peça de vestuário que oculta o rosto de uma pessoa, e não da proibição de exibir um símbolo.
2. Sobre o impedimento, por parte de terceiros, de saírem à rua sem burqa: "mas elas usarão todos os meios que julguem melhorar, por pouco que seja, as suas vidas"
Elas, que vivem sob prisão domiciliária imposta pelos familiares, usarão a burqa para poderem ao menos ir até ao fundo da rua. E nós aceitamos passivamente, porque acreditamos que não temos nada a ver com o processo de libertação delas...
Tenho de discordar. Se há na nossa sociedade casos de cárcere privado, há que os identificar e resolver. Até podemos permitir o uso da burqa, mas apenas como estratégia para melhor identificar os cenários do crime, e agir imediatamente.
A acção passa, penso eu, não por um polícia passar uma multa, mas por levar esta mulher a um centro especial onde será recebida por mulheres que lhe explicarão, se necessário na sua língua, os seus direitos e os apoios ao seu dispor (no âmbito de, como dizias, "programas eficazes de assistência, informação e educação para a igualdade") , iniciando simultaneamente um processo de inquérito ao seu contexto familiar.
Esta questão do cárcere privado levanta questões delicadas: queremos transformar-nos numa sociedade de bufos? Espera-se de mim que controle as pessoas da minha rua, me questione sobre os motivos de um vizinho que passa muito tempo na cave, da mulher da janela em frente, que nunca sai à rua?
No fundo, preferimos ser discretos, não nos meter na vida dos outros. Mas se sabemos que há na nossa sociedade pessoas que entendem que podem ter cárceres privados, como é que devemos agir? Até que ponto é que a rejeição da bufaria social não é também uma conivência com crimes?
3. Quanto às mulheres que usam a burqa por convicção: "A luta pela igualdade é um esforço permanente de longo prazo, mas o sucesso desse esforço fica comprometido com a hostilização das mulheres que usam a burca, e das que não usam mas apoiam as primeiras. Como é que se integram as mulheres na igualdade sem a colaboração delas? A tradição pode ser opressora mas nunca o é tanto como a tradição dos outros quando ela se impõe pela força."
Concordo inteiramente com esses argumentos.
Contudo: se eu quero proibir a burqa, não é para empurrar as mulheres para a igualdade, é porque me incomoda não ver a cara das pessoas que se cruzam comigo na rua.
As pessoas podem ter as tradições que quiserem, desde que elas não colidam com práticas fundamentais da sociedade em que vivem.
Na cultura europeia, andar na rua sem mostrar a cara é um acto anti-social.
Em nome de quê deve ser tolerado?
Penso que podemos - e devemos - equacionar abertamente e sem complexos a questão dos limites do vestuário que se pode usar no espaço público.
Quanto aos símbolos: deve a nossa sociedade permitir que alguém exiba em público símbolos que agridem os nossos valores mais importantes? Deve a sociedade impedir-se sequer de debater o uso desses símbolos, alegando que numa sociedade multicultural tudo se justifica e autoriza?
Dois comentários finais:
- Discutimos a burqa porque é um sinal visível e que nos incomoda pessoalmente, além de ser uma ameaça à segurança. Mas há muitas outras tragédias para lá da burqa: as miúdas que são proibidas de participar nas aulas de desporto, ou que desaparecem da escola porque foram casadas à força. Os rapazes que são casados à força segundo interesses familiares (pois, que nisto a tradição não faz distinções de género). Entre muitos outros.
- Uma mulher ocidental que se converteu ao Islão e decide usar a burqa é alguém que decide voluntariamente virar as costas à igualdade. Diremos que a sociedade a hostiliza, ou que é ela quem está a hostilizar a sociedade em que nasceu?
O discurso da libertação e da igualdade das mulheres não pode ser o mesmo para as que nasceram nessa tradição de subjugação feminina e as que nasceram num contexto de liberdade e igualdade mas decidiram voluntariamente entrar num esquema de profunda submissão.
16 comentários:
Concordo em absoluto.
E mais uma coisa: quando nós visitamos os países muçulmanos, temos que usar um lenço. Não se pode andar de calções, nem de vestidos sem mangas, nem beber bebidas alcoólicas! Temos, dentro de certos parâmetros, de evitar transgredir ou melhor, ofender, a sua moralidade pública, digamos assim.
Em França, não me recordo onde (como provavelmente têm também conhecimento), um banco foi assaltado por indivíduos vestidos com burcas – o segurança do banco até lhes abriu a porta pensando que eram senhoras!
Pois é, a gente começa a escrever e quando pára para respirar escreveu um livro :)
O problema aqui é que nos habituamos a falar da burca quando o que está em causa é apenas a parte que cobre o rosto. Não sei quantas bombas se podem esconder por baixo do pano que vai de uma orelha à outra e do pescoço à testa, mas já nada me surpreende. Se estamos a falar da espécie de tenda que cobre o corpo todo então temos de proibir também outras peças de roupa. Um brasileiro foi abatido a tiro pela polícia no metro de Londres porque tinha um blusão que a polícia achou bem plausível de esconder explosivos. Daqui a nada uma freira pode esconder um míssil por baixo do hábito (muito semelhante ao chador, diga-se), assim como um padre o pode fazer por baixo da sotaina e uma grávida de oito meses pode não estar grávida e esconder ali uma bomba. E que dizer dos carrinhos de bebé? Será que é um bebé que vai ali? Proíbam-se carrinhos de bebé a menos de dez metros do infantário. Não é difícil perceber a paranóia em que estaríamos metidos, a menos que digamos assim: mas o nosso problema é mesmo com os muçulmanos porque não são de confiança. Ok. Então diga-se isso e discuta-se.
1 - O exemplo do nu é o primeiro que se vai buscar, talvez por ser o extremo do da burca, mas a higiene é razão suficiente para proibir a nudez fora dos locais próprios.
Tocas num ponto importante que é o da consistência. Se essa lei existe então tem de ser cumprida por todos. Em Portugal, salvo erro, também há uma lei assim. Não sou a favor de abrir excepções à lei no interesse do multiculturalismo, ou por receio de que nos chamem nomes, mas repara; a comissão francesa recomenda uma lei que proíba o disfarce do rosto, ou seja, é uma lei genérica, não menciona a roupa das mulheres directamente, mas é ela que está na origem da lei e os políticos franceses deixaram-no bem claro. Dá-lhes jeito usar o corpo da mulher para ilustrar as suas agendas políticas. É nesse sentido que a lei as torna únicas. É uma lei feita exclusivamente para elas.
(mais a seguir)
2 - A ida até ao fundo da rua pode significar a fuga e o pedido de ajuda. A proibição total impediria a identificação desses casos e o pedido de ajuda da mulher.
Sobre o que sugeres; no caso de a burca ser um acto voluntário acabaria por se tornar ridícula a cena do polícia a declamar os direitos da mulher a alguém que os conhece de cor e salteado, às tantas tão francesa quanto ele. Julgo que as instituições que trabalham perto dessas comunidades são mais competentes para identificarem os casos que devem ser seguidos pelas autoridades ou não e, claro, sensibilizar as pessoas para a distinção entre bufaria e responsabilidade cívica.
Se eu souber de uma situação de violência doméstica, abusos sobre crianças, ou uma casa ou estabelecimento que está a ser assaltado, ou outra situação do género, denuncio sem hesitações. Faria o mesmo se me apercebesse de um caso de cárcere privado. Isso não é bufaria. É responsabilidade cívica. Bufaria é denunciar o vizinho à TVCabo.
3 - Quando se fala dos símbolos lembro-me logo de quando a Alemanha tentou convencer a UE a proibir a suástica em todo o seu espaço. Os hindus europeus não acharam piada porque para eles é um símbolo milenar de paz, no entanto nunca vi nenhum hindu representar esse símbolo em público com grande alarido. É uma questão de respeito mútuo. Não se proibiu a suástica em toda a UE e eles não andam por aí a exibi-la ostensivamente.
Temos de fazer entender isso a quem usa voluntariamente símbolos que nos magoam. Por exemplo, há raparigas em França que usam a burca esporadicamente num claro sinal de provocação. A burca, pelas suas características, adapta-se a um exercício de visibilidade para uma existência que nem sempre é reconhecida - a dos problemas que os jovens enfrentam nas cités e o racismo na sociedade. É uma arma de protesto. As Ni Putes Ni Soumisses teriam tido a cobertura mediática que tiverem se não se tivessem manifestado de burca contra a burca? Talvez não.
Na Europa, quando queremos protestar (e temos toda a liberdade para o fazer) não queremos atrair desprezo para a nossa causa, e para toda uma cultura neste caso, mas sim solidariedade da opinião pública, por isso, não nos enfiamos dentro de burcas a menos que queiramos protestar contra as burcas. Ofende toda a gente, muçulmanos moderados incluídos. Fazemos greves, manifestações, usamos a imaginação. A criatividade não tem limites. Há formas de chatear o governo e de chamar a atenção sem ofender as pessoas e dar um tiro no pé.
Deve-se debater sem dúvida o uso desses símbolos, até porque isto não é só sobre quem a quer usar. É também sobre quem é obrigada ou pressionada a usá-la (pressão de grupo), sobre a bestialização dos homens pela mensagem implícita de que são uns broncos incapazes de se controlar, pela demonstração da hipótese da mulher poder ser apagada do espaço público, etc.
Mas proibir a burca não é o mesmo que proibir a suástica. É muito mais complexo porque uma burca pode esconder a violação dos direitos humanos de alguém.
A proibição por motivos de segurança, mas segurança no sentido de identificação e demonstração de intenções (a mesma que nos é exigida e que cumprimos de forma automática), dentro de alguns locais a par da consistência é suficiente. Proibir não, mas facilitar também não.
Catarina,
esse é um dos argumentos que nunca hei-de usar nesta discussão.
Independentemente do que acontece noutros países, queremos discutir aqui quais são os princípios que orientam aquilo que acontece no nosso.
Para mim, esta atitude é fundamental por duas razões:
- entrarmos numa dinâmica de reciprocidade com a sharia significa um retrocesso brutal para a nossa sociedade - se "eles" não respeitam a liberdade de religião, então nós também não somos obrigados a respeitá-la?
- acabaremos a ser profundamente injustos com as pessoas. Por exemplo: vamos atirar à cara de um muçulmano (moderado ou fundamentalista, nem interessa) que os "da laia dele" resolvem os problemas à chicotada e à pedrada, e portanto ele escusa de se queixar do par de bofetadas que um polícia europeu lhe deu?
Catarina,
continuando: em Roma sê romano. No Irão é importante que uma mulher cubra o cabelo, nos EUA é importante que uma menina de quatro anos se vista e mova de maneira a que ninguém lhe veja as cuequinhas, etc.
E na Europa? Quais são os hábitos, quais são os limites numa sociedade tão aberta e tolerante?
É isso que estamos a tentar definir.
Maria N.
(cá vamos nós para as epístolas...)
Tens razão quanto à segurança e aos exemplos que dás. Há muitas maneiras de esconder uma bomba; uma burqa é uma maneira especialmente fácil; mas o problema é mesmo o não poder ver a cara das pessoas e a desconfiança que há em relação aos muçulmanos.
Fale-se abertamente disso, já que só temos a ganhar com o debate.
E, sobretudo, faça-se a distinção entre "muçulmano" e "fundamentalista islâmico".
1. A nudez. Penso que a sua proibição não se prende com razões de higiene, mas de pudor e tradição. Se fosse uma questão de higiene, obrigavam-nos a usar máscaras.
Parece-me que a proposta francesa não se dirige propositadamente às mulheres, mas às burqas. Se fossem os homens a usar burqa, penso que a proposta seria feita de igual modo. O problema, parece-me, é mesmo o mal-estar social de partilhar o espaço público com pessoas que escondem o rosto. E será também, não me custa nada aceitar essa possibilidade, uma barreira ao fundamentalismo islâmico na Europa. Uma outra medida que está a ser debatida na Alemanha: os pregadores das mesquitas alemãs devem ser formados neste país, em escolas reconhecidas e controladas pelo Estado.
2. Eu estava a falar apenas das mulheres a quem a burqa é imposta.
Concordo com o modo como colocas a questão da bufaria e da responsabilidade cívica.
Contudo: se já é tão difícil telefonar à Polícia num caso em que se ouve o vizinho a gritar com a criança e esta a chorar aterrorizada, mais complicado fica se os vizinhos são muçulmanos. "Eles lá sabem, eles que se entendam". Entre as sociedades paralelas há muros invisíveis mas muito difíceis de ultrapassar.
3. Pois.
Sabes uma coisa que me intriga?
Não consigo imaginar um homossexual a andar de triângulo rosa ao peito para avisar que é homossexual (não para protestar contra perseguições, mas simplesmente porque entende que um homossexual deve trazer esse símbolo na roupa). Não concebo um seropositivo a usar - sei lá - um barrete com chocalhos para avisar todos que é seropositivo.
Pergunto: o que é que leva uma mulher nascida num meio cultural ocidental a optar voluntariamente por usar a burqa, por achar que é assim que uma mulher deve andar na rua?
Catarina,
reli o seu comentário e a minha resposta, e dei-me conta que tive um reflexo pavloniano.
Desculpe.
É mesmo um problema meu: se ouço "nós na terra deles", ou algo do género, farejo logo sangue, nem tenho tempo para pensar.
Agora de cabeça mais fria: sim, é verdade que nós também temos de respeitar certos costumes em terras alheias.
Enfim, mais ou menos: quem como eu viu alemãs no Egipto a desembarcar do avião já de olhos em riste para caçar um mancebo que lhes sirva de garanhão durante a semanita de férias...
O que é aceitável na nossa sociedade? E que fazer quando são "os nossos" (no caso, mulheres cristãs que se convertem ao Islão) que optam por determinados comportamentos que desagradam à maioria da sociedade?
Como dizer, neste caso, "em Roma sê romano"? Elas vão responder: "mas eu sou romana!"
Pois: que fazer quando as romanas estão a mudar Roma?
Compreendo o seu ponto de vista, Helena. Esta, tal como tantas outras, não é uma questão fácil de solucionar ou de se chegar a um consenso. O que tenho estado a tentar dizer é simplesmente que sou contra a cara tapada. Nem me incomoda os fatos compridos, tanto das mulheres islamistas ou das ciganas ou os turbantes dos hindus, etc. Posso pensar: deve ser incómodo no Verão, que trabalheira vestir aquela roupa toda () mas faz parte da sua rotina, não os incomoda. E em relação aos imigrantes/asilados/refugiados a minha opinião é que continuem a manter as suas tradições, os seus costumes mas que tentem integrar-se na sociedade que os acolheu e não tentem modificar as características fundamentais dessa sociedade, que observem as leis tal como os nativos.
Aqui em casa já ninguém fuma. Não há cinzeiros. Continuo a ser amiga de fumadores e fumadoras. Mas não abro excepções. Na minha casa não se fuma... ponto final! Estou a ser injusta ou indelicada com os meus convidados? Acho que não. Seriam eles indelicados se insistissem? Acho que sim.
Um hindu que usa turbante emigrou para um país onde é obrigatório usar-se capacete quando se anda de motocicleta. Andava de motocicleta sem capacete. Um dia um polícia mandou-o parar numa autoestrada e multou-o. O homem achou que o polícia estava a infringir os seus direitos. Foi a tribunal. Alegou que os seus direitos foram infringidos, alegou descriminação e sei lá que mais ... e que inclusivamente não havia capacete suficientemente grande para cobrir o turbante. E o juiz (mais ou menos assim) disse: esta é a lei deste país. Todos têm que usar capacete por questões de segurança. A multa teve que ser paga. Sempre fui a favor do multiculturalismo talvez porque sempre tive uma grande curiosidade de aprender e vivenciar outras culturas, outras tradições. Mas quando essas são impostas no país de acolhimento de forma a alterar as suas leis, as suas tradições por vezes seculares... aí já penso duas vezes.... Já estou como o primeiro ministro australiano. São bem vindos mas observem as nossas leis, de contrário podem regressar de onde vieram... (mais ou menos isto... )
Catarina,
contra a cara tapada, acho que já somos três nesta caixa de comentários.
E também acho aquele exagero de roupa incómodo no Verão. Até conheço um franciscano que chega ao Verão e desata a pensar palavras feias... ;-)
As coisas começam a complicar quando se questiona os interesses em questão: por exemplo, pesar o interesse de uns em ver a cara da pessoa e o de outros em ocultá-la por pudor.
O pudor, aliás, é um argumento que tem sido pouco usado nesta discussão. Até que ponto podemos obrigar uma pessoa a mostrar partes do seu corpo contra a sua vontade?
Quanto ao ministro australiano: boa parte das mulheres que usam burqa em França são francesas, e muitas delas até são francesas que se converteram ao Islão. Para onde as podemos mandar? Só se fosse criada uma área no país reservada para uma espécie de emirato...
Sobre o que ser em Roma (sendo que Roma fica no ocidente) já ouvi duas posições antagónicas: em Roma sê romano x em Roma sê quem és.
O Einstein, só para dar um exemplo mais famoso, era contra o "em Roma sê romano". Achava que os judeus não se deviam deixar assimilar, deviam continuar as suas tradições culturais, deviam inclusivamente ter escolas especiais para os seus filhos.
Como é com os judeus e com o Einstein, a gente dá-lhe o benefício da liberdade de expressão. Fosse um muçulmano dos nossos dias a dizer o mesmo...
O ditado "em Roma sê romano" dá no Google 181000 resultados. A frase "em Roma sê quem és" não foi encontrada pelo Google que se constata assim andar distraído em relação a caixas de comentários, embora seja bom para medir a popularidade (que não a qualidade) de frases e vocábulos. Em inglês "in rome do what the romans do" encontra 822000 resultados, em francês "à Rome fais comme les Romains" encontra 129000. Este pensamento faz parte do património da civilização ocidental. A Helena e a Catarina falaram bem e acho que a Maria N. neste tópico não tem razão.
jj.amarante,
e o ditado "olho por olho dente por dente" dá no Google 1.440.000 resultados, enquanto que o "ama o próximo como a ti próprio" (com variações) não chega a meio milhão.
Se o Papa sabe, acho que lhe vai dar uma depressão profunda...
Não sei realmente até que ponto esse pensamento faz parte da tradição ocidental. O que é que nós fazemos nos outros continentes? Os europeus que se instalaram em África, na Índia, nas Américas, aceitaram as culturas que lá encontraram, levaram a sua própria, ou criaram uma mistura das duas?
Mais recentemente: o que está a acontecer nos grandes centros de turismo? Como está Maiorca? As Canárias? É mais fácil encontrar lá salsichas tipo bávaras que tapas...
Há muitos anos li um livro sobre o caso de Mijas, uma aldeia espanhola que foi invadida por turismo, e sobre o modo como tudo o que era cultura local foi literalmente dizimado.
E os invasores eram os europeus do costume, nem sequer eram pessoas com turbantes e véus integrais.
"Nós" também somos invasores, e também impomos os nossos hábitos aos outros.
Há um filme lindíssimo, feito na Jugoslávia nos anos 80, que se chama "A Beleza do Pecado" e conta justamente o dilema das populações muçulmanas confrontadas com os clubes de nudismo que, por motivos económicos, o país aceitou instalar nas suas praias. Aí temos o contrário: os "romanos" que continuam a ser romanos fora de Roma, sem respeito pelas tradições do país onde fazem férias.
Outro problema é: o que é ser romano? Ainda outro dia contei que um alemão queria fazer uma festança com lombo de porco assado numa sexta-feira santa, e só ao fim de vários comentários é que alguém lembrou que talvez aquele não seja o dia mais adequado para um lombo de porco...
É apenas um detalhe, mas mostra como as referências culturais que durante séculos permaneceram inquestionáveis estão a mudar.
E chegamos a uma situação em que, de um lado, não sabemos quem somos, e porque devíamos proibir certas coisas, e do outro lado se sabe perfeitamente (aparentemente) quem se é, de onde se vem, para onde se vai e, sobretudo, como se vai (= sob uma burqa).
Por isso é fundamental debatermos. Só assim ficaremos mais conscientes da nossa identidade e dos princípios que devem pautar as nossas decisões em sociedade.
Finalmente, e isto é uma importante lição da História: no séc. XIX os judeus europeus fizeram um imenso esforço de assimilação. Três ou quatro décadas mais tarde estavam a ser acusados de "infiltrar o sistema" e obrigados a usar uma estrela amarela na roupa para a sociedade melhor se proteger deles.
Devido aos acentos, primeiro escrevo em word e depois colo o texto na caixa dos comentários. Quando ia apagar alguns textos, deparei-me com o “asilados” num dos meus comentários. É possível que alguns imigrantes estejam em asilos... mas na altura eu referia-me aos “exilados”!
“Depressa e bem, não há quem!” : (
Catarina,
Bem-vinda ao clube das gralhas nas caixas de comentários! :-)
Conheço alguns "asilados" - os que vivem num centro de refugiados enquanto esperam que o Estado lhes dê autorização de residência.
Uma situação terrível, por sinal: esperam anos, sem saber se vão ser repatriados no dia seguinte ou se vão ser autorizados a ficar.
Têm problemas bem mais graves que o de usar burqa ou não.
Nunca vi lá ninguém de burqa, mas assisti a um episódio curioso: numa festa que lá fora organizada, havia um grande grupo sentado a uma das mesas compridas com bancos corridos. Um médico afegão, pessoa inteiramente integrada na Alemanha, sentou-se no banco da mesa ao lado para poder conversar com este grupo. Passados uns momentos levantou-se, comentando que era falta de respeito sentar-se num banco onde já havia uma mulher sentada (ela estava no outro extremo, e olhava noutra direcção). Nunca olhou para a mulher, também não lhe pediu desculpa, mas levantou-se do lugar onde estava em sinal de respeito para com ela. A nós nunca teria ocorrido que sentar-se num lugar livre durante uma festa podia ser sinal de falta de respeito para alguém!
E também tenho a história de uma amiga alemã que se fartou de fazer asneiras no Japão, pensando que estava a ser normal e bem educada.
Mas já estou a fugir ao assunto.
1 - A nudez é por causa do pudor, mas como ele evolui, a higiene é um bom argumento para se continuar a proibir. Andar nu não é o mesmo que andar de rosto descoberto. Talvez seja de mim, mas não me vejo nada a partilhar certos espaços com quem por lá andou todo nu.
Se fossem os homens a usar burca, a proposta seria feita de igual modo, mas os vários argumentos teriam peso diferente. Os dividendos políticos seriam os mesmos?
O mal-estar social é importante mas ele apoia-se mais na associação à opressão das mulheres do que em ver ou não o rosto.
Trata-se também de uma preocupação com o radicalismo, mas o radicalismo precisa de seguidores para se expandir. Proibir as burcas elimina o radicalismo? Fadela Amara reconhece no seu livro que os muçulmanos de segunda e terceira geração estão menos integrados do que os da geração dela e da dos seus pais. Porque será? A não integração torna-os mais vulneráveis à evangelização por parte dos radicais islâmicos. Se proibirem as burcas deixam de estar vulneráveis?
Vamos cair sempre no mesmo.
2 - Eu sei que falavas das mulheres a quem a burca é imposta mas como é que um polícia sabe se ela é imposta ou não? Tem de se dirigir a todas e a maioria das que vai encontrar, ou todas, dirão que o uso é voluntário.
3 - Sobre as mulheres ocidentais que decidem usar a burca, li e ouvi alguns testemunhos e continua a ser uma coisa que me ultrapassa. Talvez se o nazismo tivesse obrigado as mulheres a andar de burca elas não o fizessem. Quando algumas falam de como a submissão ao marido as liberta, aí parto a louça toda. Entendo isso em alguém que foi educado para pensar assim, mas não o entendo em quem não o foi. Outras falam da escolha pessoal, de uma opção inteiramente delas que nada tem a ver com submissão. Haverá um leque de motivações. Os novos convertidos a um credo geralmente são mais fundamentalistas que os veteranos.
"Que fazer quando as romanas estão a mudar Roma?"
Não acho que 1900 mulheres (número estimado de burcas em França) estejam a mudar Roma. A lei (se não for inconstitucional - este é também um dos problemas) será mais preventiva do que resposta a um problema real. Mas há uma coisa que me intriga: quando se iniciou o debate em França a estimativa era de menos de 400 burcas. Agora é de 1900. Estimativas mal feitas ou há aqui uma relação?
Gosto de ouvir estórias, Helena. E a propósito de gralhas, decidi que vou adotar o novo acordo ortográfico. De certo vou fazer uma “misturada” de início... mas com o tempo lá chegarei... :)
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