Outro dia ia eu de carro toda descansadinha pelo centro de Berlim quando vi ao longe pedintes romenos disfarçados de lavadores de vidros de carros. Ainda tentei o truque da minha amiga de São Paulo, parar o carro longe, ou ir muito devagarinho para estar outra vez verde quando eu chegasse ao semáforo, mas era impossível. Fiquei parada a três carros do sinal vermelho, vi-os a avançar muito prazenteiros na minha direcção.
Pus cara de maus amigos, de muito mas mesmo muito maus amigos, com um olhar de ferro fiz-lhes sinal que não, e aconteceu um milagre: eles passaram logo para o carro seguinte, e nem sequer se atreveram a desenhar no meu pára-brisas um coração com a água ensaboada.
Muito mais haveria para dizer sobre estes pobres que aqui se instalam, mas fica para outro post.
Hoje ia sentada no autocarro, quando a senhora sentada à minha frente pediu a uma adolescente que ia em pé se podia pôr o cabelo para outro lado, porque estava sempre a dar-lhe na cara. A miúda (que tinha um cabelo lindo, muito comprido, mas um bocado esvoaçante por cima do carapuço) para espairecer o embaraço contou o incidente aos dois rapazes com quem ia. Então um dos rapazes agarrou no cabelo dela e começou a atirá-lo de propósito na direcção da outra passageira.
Pus logo a minha cara de muito maus amigos. Mas o rapaz não devia ser lavador de vidros, porque não se deixou intimidar. Daí a nada saíram, e eu comentei com a senhora "atrevem-se a tudo!" - mas ela não respondeu nada porque estava quase a chorar.
O que é que eu podia ter feito?
Há tempos, um cunhado meu afrontou uns palermas que estavam a urinar no metro, e levou uma carga de pancada - perante dezenas de testemunhas. Outro dia, um pai de família tentou proteger uns miúdos que estavam a ser assediados por uns rapazolas no comboio, e foi morto a pontapé na plataforma da gare.
Enfrentar rapazes não é muito boa ideia, porque nunca se sabe como é que a situação pode escalar, mas confesso que a primeira coisa que me ocorreu foi desancá-los verbalmente.
Esprit d'escalier é a minha especialidade: teria sido tão mais simples se me tivesse levantado como quem quer sair do autocarro, e me tivesse posto com cara de só vim cá ver a bola entre os cabelos da miúda e cara da senhora.
***
Há aqui um fenómeno muito preocupante: nesta sociedade os jovens permitem-se cada vez mais comportamentos bárbaros - perseguição dos mais fracos só pelo prazer de chatear, vandalização do espaço público, total falta de civismo - e poucos adultos ousam sequer chamar-lhes a atenção.
A polis feita por estes jovens é tudo menos aprazível.
10 comentários:
Nao tínhamos há uns meses andado já a debater estas coisas do excesso de energia nas maos de rapazes jovens?
Eu, assim do pé para a mao, lembro-me logo do Afonso Henriques ;)
PS: Sobre o que fazer também tenho sempre as minhas dúvidas (e as minhas vergonhas).
por favor, alguém dê uma sugestão...Nunca sei o que fazer numa situação dessas.
Sem querer desculpar a falta de civismo e de respeito pelo outro que esses jovens evidenciam, queria acrescentar que a polis não é feita por esses jovens - é feita pelos pais deles.
Olá, Miguel-bem-aparecido,
tens razão. Mas não deve ser só uma questão dos pais. Há aqui um sentimento de impunidade que não deve vir só de casa.
Cenas destas acontecem demasiadas vezes. Por exemplo: um jovem deita lixo ao chão no autocarro, todos se sentem incomodados, mas ninguém se atreve a dizer-lhe que isso não se faz.
Como é que chegámos a este ponto?
Lembro-me de quando era miúda e tocava às campainhas para fugir a correr. Sabia perfeitamente que isso não estava bem, e sabia que se fosse apanhada teria de "amouchar". Também me lembro de, aos 10 anos, ajudar uma amiga a escrever MRPP num taipal das obras. A lápis, em letras muito pequeninas, cheias de sentimentos de culpa por estar a fazer algo proibido... (às vezes a infância é um sítio tão engraçado)
Em compensação, tenho algumas discussões com o meu filho, porque ele acha que as diabruras são normais e aceitáveis. Sob o carimbo "brincadeiras de rapazes" permitem-se alguns pequenos actos de sadismo. De modo que vamos continuar a discutir, e eu vou continuar a insistir que do lado de lá da gracinha há alguém que se sente agredida.
(Antes que pensem que sou a mãe do maior monstro de Berlim: não sou. Quer dizer: não é. Não conheço rapaz mais delicado que aquele.)
Lucy,
quanto mais penso nisso, mais acho que o melhor é evitar afrontar as pessoas. No caso, eu devia ter-me posto distraidamente a pé para ficar entre os dois. No caso dos que deitam propositadamente lixo para o chão, apanhá-lo e talvez dizer-lhes "acho que isto é seu, já não precisa?"
No caso dos palermas a urinar no metro, o meu cunhado devia era ter telefonado à polícia.
Há uns anos vi três rapazes a bater numa mulher, no meio da rua. Sem pensar avancei na direcção deles a gritar "o que é que vocês estão a fazer?". Um deles parou para me explicar o que tinha acontecido. Queria falar comigo, queria que eu reconhecesse a razão que ele tinha!
Não sei o que é que na minha atitude provocou o diálogo, em vez de ter sobrado pancada também para mim. Mas era importante saber encontrar esse algo que toca as pessoas que estão a ser agressivas, e as humaniza.
Rita,
e a que conclusões chegámos?
O D.Afonso Henriques tinha hormonas institucionais, digamos assim. Aquilo fazia tudo sentido - mesmo a tareia na mãe (também o galego era fino, manda a namorada à frente pensando que por ser mãe não levava?) (história de Portugal à maneira da Helena Araújo, não percam o próximo episódio).
Mas estes jovens parecem viver numa ilha, cada um por si, sem o menor interesse pelo bem comum e numa polis onde haja lugar para todos.
Eis, em versao muito resumida, o que defendo: dar-lhes o poder que nao têm (e nao o ter dá-lhes o direito de se sentirem do lado de fora do sistema em vez de forçar a sua integraçao), possibilidades de afirmaçao, descobrir sentidos e criar vias de escape. E entretanto saber que nao vai mudar totalmente nem é inteiramente de hoje.
Uma Polis onde haja lugar para todos exige que todos nos sintamos responsáveis por ela, respeitados enquanto seus membros e certos de que também fazemos parte desses todos para os quais ela reserva um local.
E depois, espaço para as diabruras. O teu papel continua a ser dizer que nao, mas o teu filho tem razao. Nunca te contei do colega que tentámos mandar para um casting na Agência Magno?
Falhou por pouco e ainda hoje choro a rir quando o imagino a chegar e dizer "Olhe, boa tarde, vinha para o casting!". E os inquéritos sobre "os efeitos da educaçao sexual dos anos 60 na educaçao dos jovens de hoje", onde ficávamos a saber se os rapazes se masturbavam?
Mas a nossa consciência saudável arrependia-se (e nao contávamos a ninguém as respostas do inquérito)e também teremos sido vítimas de uma ou de outra.
Quando leio coisas destas fico contente por morar em Munique. Não é que não existam episódios isolados de violência juvenil, mas parece-me que são muito mais esporádicos que noutras zonas da Alemanha. E por aqui há tanta polícia, que parece impossível que aconteça alguma coisa.
Rita,
sobre as tuas diabruras: ai ai ai a nossa vida! (com uma gargalhada)
Sobre o poder dos jovens: correndo o risco de estar a generalizar imenso, por um lado, e a escancarar aqui a minha ignorância, por outro, pergunto-te se os jovens de hoje têm menos poder que os jovens das gerações anteriores. Acho que não.
Porquê dar-lhes poder? O poder agora não é fruto de uma conquista e de um merecimento?
Se há coisa que me irrita são os miúdos de hoje com a mania de que tudo lhes é devido. Permitem-se criticar tudo e todos, menos a eles próprios. Já na escola primária se via isso: os professores e os pais desunhavam-se para lhes darem alguma coisa especial, e quando chegava o momento da avaliação aqueles dois palmos de gente começavam a fazer a lista do que não gostaram.
Pergunto-me se esta atitude não será em parte um resultado das actuais técnicas de publicidade, que transformaram os miúdos em grupos cuja identidade se funda numa forte oposição aos adultos, ou ao mundo destes.
Quanto a dar-lhes "possibilidades de afirmaçao, descobrir sentidos e criar vias de escape" - inteiramente de acordo. E acrescentaria: cuidar das perspectivas. O futuro está cada vez mais incerto. A minha geração não temia o desemprego, por exemplo. Se a minha filha diz que gostava de estudar filosofia, eu penso com os meus botões que é um óptimo curso para ser taxista... (é melhor rir que chorar)
Quando digo poder, digo poder de intervençao e de contribuiçao (olha, de mitgestalten, que isto hoje a cabeça nao dá para mais). Acho que se a direcçao da escola tiver em conta os alunos desde o primeiro passo de uma tomada de decisao, a decisao é melhor, a revolta mais complicada e o sentimento geral mais positivo, mesmo que no fim nao concordem (como comigo e com os resultados vergonhosos do orçamento participativo de Lisboa). Isso vai por aí fora, bairros, empresas, países.
O poder nao é só poder de compra, como o da publicidade, nem o poder de dizer mal, como contas. Quando o poder de dizer mal dá a responsabilidade de fazer melhor, as coisas piam de outra maneira. É uma aventura, mas eu acho que vale a pena.
E sim, promessas de futuro.
PS: Corrige aí a Snow, explica-lhe que isto de Berlim é uma aldeia, olha que ela está a ficar assustada e a cidade dela às tantas é mais movimentada que a nossa (e nao exactamente isenta de episódios chocantes de violência juvenil)
(passei o segundo PS para um e-mail)
E agora a propósito:
http://jornal.publico.clix.pt/noticia/27-01-2010/vem-ai--uma-geracao-de-rapazes-frustrados-18656888.htm
Temos poucos filhos, por isso damos-lhes mais importância e reconhecemos-lhes mais poder do que eles deveriam ter. Vivemos numa sociedade obcecada com a juventude, que nos bombardeia com mensagens de como só é bonito quem é (ou, pelo menos, parece) jovem. Acrescente-se a isto que a adolescência nos dá (lembram-se?) uma sensação de sermos omnipotentes e imortais. Junte-se-lhe muita demissão de pais presos numa espécie de adolescência perpétua, incapazes de ouvir os meninos dizer «És mau, não gosto de ti!» quando são contrariados e, portanto, incapaz de os contrariar. É uma mistura explosiva.
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