O aeroporto de Frankfurt estava coberto de neve. A intervalos regulares era preciso parar tudo para limpar as pistas. Antes da partida, era preciso tirar o gelo de cada avião.
Em suma: condições catastróficas.
Não admira, pois, que o nosso avião para Berlim tenha sido cancelado. O nosso e mais uns cem. Milhares de pessoas tiveram de ser alojadas em hotéis da região.
Em frente aos guichets de atendimento havia já caixas com bebidas e pacotes de bolachas. Entre o momento em que soubemos que o nosso avião fora cancelado e a entrada no táxi colectivo que nos levaria ao hotel não demorou mais de uma hora.
Éramos os últimos passageiros naquele táxi. Acomodámo-nos como pudemos entre a nossa tralha e os outros passageiros. Eu com o meu saco de limões e kiwis apanhados horas antes num Portugal cheio de luz, a vizinha da frente, espanhola, levando no regaço o quadro enorme que um irmão meu nos tinha oferecido.
Começámos a contar as peripécias do dia.
A senhora que vinha da Silésia e não pudera ir a dormir a Düsseldorf porque o aeroporto estava pura e simplesmente encerrado pediu desculpa ao passageiro do lado: "olhe que se chego demasiado perto é só porque tenho a minha mala entre as pernas". Olhámos todos: tinha a sua perna colada à dele, e não se podia mexer.
O Joachim comentou: "Bem, se é para ter azar com o tempo, mais vale ser passageiro da Lufthansa - aqui vamos nós a caminho do hotel, com um voucher para jantar, e um kit para passar a noite. Podia ser bem pior!"
A senhora da Silésia concordou, e disse com toda a convicção: "Dêmos graças a Deus!"
Fez-se um silêncio profundo no shuttle.
No dia seguinte, às seis e meia da manhã, de novo no shuttle a caminho do aeroporto.
Atrás de nós duas pessoas de idade conversavam em francês.
- Esqueci-me completamente de tomar os medicamentos, dizia ele.
- Eu não me esqueci, respondia ela, mas não tinha água e por isso não tomei.
- Mas no quarto havia uma garrafa com água!
- Pois havia, mas eu não gosto de mexer no que não é meu.
- Bof, era apenas uma garrafa de água.
O Joachim e eu fazíamos de conta que não percebíamos, e abafávamos a vontade de rir.
Daí a nada começaram a falar da família:
- Um primo meu tornou-se religioso, é muito desagradável. Leva tudo muito a sério, ficou pesado.
- A minha filha respeita os preceitos. O meu filho não. Nada de ir à sinagoga. Ao sábado, se lhe apetece, telefona. Mas quando vem a nossa casa também não se põe com esquisitices com a comida. É adorável.
Fiquei a pensar na surpresa de ouvir alguém falar em sinagogas - é verdade, na Alemanha não há muito contacto com judeus. E como podia haver? O Holocausto deixou um vazio como herança.
E pensei também na familiaridade do tema. Como lidar com pessoas que respeitam cuidadosamente as regras religiosas, como elas se tornam pesadas para os outros.
25 comentários:
Se calhar ele era pesado, não por causa das suas necessidades pessoais específicas, mas porque as impõe aos outros como se fosse o direito dele. Eu já convivi com muçulmanos, católicos e hindus praticantes sem achar as suas regras pesadas. Mas já apanhei com aqueles católicos portugueses que acham que o país é católico e portanto podem impôr aos outros o que querem. É esta percepção de direito adquirido que me põe furibunda e com vontade de ir com a Fernanda Câncio para uma demonstração.
Que fofinho, um germanismo!
PS:A minha madrinha tinha uma cunhada judaica muito ortodoxa, tentar cozinhar para ela era um absoluto pesadelo!
Peço desculpa. Quero ir com a Fernanda Câncio para uma manifestação...
É mais complicado que isso, não é?
Uma amiga minha, judia "não praticante", queixou-se-me que num jantar de thanksgiving se rezou antes de iniciar a refeição. Ela sentiu isso como uma afronta. Mas afinal de contas, o que é que está na base do thanksgiving? De que é que ela se queixa?
Em compensação, outra amiga minha queixou-se de ter feito um jantar de (epa, esqueci-me de que era!) com judeus, e de ter sido uma estopada. Rituais intermináveis, rezas entre cada prato... um dos convidados tinha um problema de saúde qualquer que o impedia de fazer uma refeição assim esticada, e teve de se ir embora.
Afinal de contas, o que é que as coisas são? O que é uma "Sexta-feira Santa"? Um dia como os outros? Então porque é que é feriado?
Se os dias importantes da religião católica são feriado em Portugal, porque é que os valores da religião católica devem passar à clandestinidade? Feriados públicos, valores privados?
Além disso: porque é que a Igreja Católica não se há-de organizar, à semelhança de outras organizações?
Porque é que o avaaz me pode encher regularmente a caixa de correio com apelos para abaixo-assinados, e a Igreja católica não pode fazer o mesmo?
Rita,
que germanismo?
Ah, já vi - demonstração.
Nada de confundir com uma manif.
Eu pessoalmente não peço que a igreja católica passe à clandestinidade. O que eu peço é que os católicos não pensem que têm o direito de impingir as suas crenças, porque o país é tradicionalmente católico. O que leva os ateus a chatearem-se é aquela atitude de "isto é tudo nosso". O cardeal patriarca fez um discurso de 15 minutos na televisão pública, no dia 24 de Dezembro, a par dos altos representantes do estado. Ele deveria saber que não é seu direito. É um favor que lhe é feito, no nome da tradição. E ele cospe no prato e manda a mensagem que os ateus são um perigo. Portanto, eu exijo que o favor que é dado ao cardeal patriarca seja retirado. Isto é pôr a igreja católica na clandestinidade?
Eu tenho bastante alergia ao laicismo forçado e à prática proibiçao de práticas culturais na esfera pública. Acho que as ruas podiam encher-se de árvores de Natal, andelabros de Hannuka e que era bom que todos soubéssemos só de andar pelas ruas que chegou o Ramadao. Acho que os professores devem poder andar de crucifixo, os colectores de impostos de turbante e a padeira de lenço na cabeça e acho que a soluçao ideal para os feriados religiosos era a integraçao de mais um ou dois de outras religioes. Depois podíamos gastá-los a aprender mais uns sobre os outros e, se escolhessemos só os mais importantes de duas ou três mais, nao acabaríamos sequer em Berlim com tantos feriados como na Baviera. No meu mundo ideal os sinos também tocam e os senhores cantam dos minaretes. E as Fernandas Câncios manifestam-se com o apoio de emigrantes giras, manifestaçao para a qual vao de autocarro ateu.
O problema com a igreja católica é que ela nao é apenas uma religiao, foi religiao dominante na Europa ao longo de séculos e séculos (na verdade, acaba por ser um problema muito semelhante ao da muçulmana, uma vez que o medo se prende com o supostamente sentido perigo da hegemonia). Ser dominante tem vantagens e desvantagens para a Igreja Católica, e uma vantagem muito clara é que, durante séculos, foi parte integrante do tecido social, tornou-se figura legitimadora dos seus rituais e deixou a sua marca nas suas estruturas. Isto é uma vantagem enorme em comparaçao.
Mas tem, claro, uma desvantagem: depois, a Igreja tem de saber aceitar que a sociedade à qual deu esses rituais, práticas e valores faça com eles o que bem entender e que, em período pós-hegemónico, os mude, descaracterize e adapte. Ela nao tem de aceitar isto de forma indiferente, pode reagir, puxar para si o que é se e vivê-lo com aquilo que sao os seus na forma que julga adequada. Pode até encontrar aqui possibilidades de uma vivência muito mais poderosa da religiosidade.
Mas nao pode pedir a todos que o façam, assim da maneira certa, ou abdiquem de viver aquilo que sao rituais também seus porque entretecidos (era interwoven) no tecido social. Vai ter de aceitar que haja presépios de renas, lombos de sexta-feira santa, gays que se unem sobre a alçada de uma palavra que ela cunhou e, um dia, baptismos civis de quem quer apresentar o filho mas nao quer filiá-lo na igreja mais próxima.
PS: Abrunho, nao acho nada estranho que o cardeal patriarca tenha 15 minutos na televisao no Natal. O que escolhe fazer com eles nao me parece supimpa de esperto, mas isso é outra questao. Porque o que é estranho nao é que eu tenha de levar com a mensagem de Natal do representante oficial da religiao que convocou aquela festa, mas que todos os outros representantes oficiais do nosso país laico também tenham mensagens oficiais. É como a Festa do Avante: nao acho nada esquisito que haja no fim um comício com o Jerónimo de Sousa e os meus amigos que iam só pela festa também nao achavam. Iam à festa daquele partido, falava um senhor daquele partido. Mas se a seguir tivéssemos de ouvir Manuela Ferreira Leite, José Sócrates, o Cardeal Patriarca e o Pinto da Costa, íamos todos achar esquisito.
Abrunho,
Toda a gente anda ao mesmo, faz parte do nosso mundo. Os católicos, a Fernanda Câncio, o Avaaz, os sindicatos, etc. - cada um tenta chegar a brasa para a sua sardinha.
Achas que o Cardeal Patriarca não tem o direito de falar no dia de Natal? No dia de Natal?! No dia em que se celebra o nascimento do filho de Deus?
O que eu não percebo é porque é que os altos representantes do Estado vão à tv na época do Natal. Mas adiante.
Tu achas que ele não tem o direito de falar. Curiosamente, enquanto esteve no ar levou a maior parte da audiência; e foi o segundo programa mais visto nesse dia. Num meio tão volúvel como é a tv nos tempos do zapping, o pessoal preferiu ouvi-lo, em vez de ver o Madagascar ou outra coisa qualquer que estava a passar na mesma altura.
Foram 794 mil espectadores. Foram 140 mil mais espectadores do que os que o Sócrates teve, no dia seguinte.
http://dn.sapo.pt/inicio/tv/interior.aspx?content_id=1456295&seccao=Audi%EAncias
Perante estes números, parece-me que a retórica da publicidade não paga e coisas assim é ridícula. A tv também é um serviço público.
Quanto a achares que ele te ofendeu: desculpa, fui ler a comunicação, e parece-me que estás a ferver em pouca água.
http://www.abcdacatequese.com/evangelizacao/documentos/150-d-jose-policarpo/801-mensagem-de-natal-do-cardeal-patriarca
Ele diz que a existência de Deus não depende de haver pessoas que dizem que não acreditam. E critica "as certezas apodícticas
com que alguns proclamam o seu ateísmo". Não devia tê-lo feito? Porque não?
Olha, a Rita andou a dizer o mesmo que eu sobre a presença do Cardeal na televisão.
Então acrescento só mais uma provocação:
quando já começara a contagem decrescente para a guerra do Iraque e o João Paulo II levantou a voz alto e bom som para o Bush, dizendo que aquilo era um crime, muitos dos que não gostam da Igreja nem do Papa tiveram uma pontinha de esperança. Então como é: aceitamos o seu poder, ou rejeitamo-lo?
A Igreja, e em especial o "monstruoso" Vaticano, pode andar a meter o bedelho no mundo real, ou deve ficar de fora?
(E agora desculpem, mas tenho de uma recepção no ministério dos negócios estrangeiros. Com licencinha, vou agora mesmo disfarçar-me de senhora.)
Eu não acho que se deva higienizar a via pública, como a Fernanda Câncio parece defender. Mas achar que, em Portugal, os ateus querem mandar a igreja católica para as catacumbas é uma injustiça. É virar a mesa e dizer que assim é que a comida fica a jeito.
Rita: a ideia do baptismo civil é genial. Devia-me ter lembrado disso há uns meses. Mas ainda vou a tempo. :D
Eu, o que achei mais esquisito foi a senhora não tomar os comprimidos por não ter água. Então não se pode beber água da torneira na Alemanha? (pergunta retórica) Irrita-me (enfim, não muito) a dependência da água engarrafada.
jj.amarante,
olhe que eram franceses!
Mas também pensei o mesmo.
A água engarrafada é um dos grandes paradoxos do nosso tempo: para não beber água "poluída", polui-se ainda mais.
Até parece o sistema Dona Branca da poluição...
Snowgaze,
pois muito me apraz
que gostes dessa prache...
;-) (viste que rimou?)
A propósito de usar o nome e reinventar o conteúdo: os cristãos alemães têm uma espécie de "ritos de iniciação para a juventude" por volta dos 15 ou 16 anos: Firmung para os católicos, Konfirmation para os protestantes. A cerimónia é antecedida de uma preparação extremamente cuidada: durante seis meses têm encontros semanais para discutir questões éticas, o sentido da vida, o "quem sou, de onde venho, para onde vou" e o "quem somos, de onde vimos, para onde vamos". Inclui trabalho voluntário numa instituição de serviço social (geralmente lares de terceira idade, infantários, centros de apoio a deficientes, etc.)
No século XIX um movimento de protesto saído das Igrejas tentou criar algo alternativo. Mais tarde os movimentos dos operários apropriaram-se da ideia e na RDA, onde se tentou por todos os meios acabar com a religião, generalizou-se essa Jugendweihe, (poderia traduzir-se como "Festa da Juventude", mas é curioso que a palavra "Weihe" tenha uma conotação sobretudo religiosa: sagração, consagração, benção...)
Aos 13 anos a minha filha foi convidada para a Jugendweihe das amigas de Weimar. E foi assim: recepção na Câmara de Weimar, onde o Presidente lhes deu os parabéns por já serem adultos, almoçarada com a família e os amigos, e depois os pais espetaram com os miúdos na rua, com umas caixas de cerveja, e ordens para regressarem a casa por volta das dez da noite.
Brilhante.
Contudo, não percamos a esperança: pode ser que daqui a 2000 anos comecem a saber fazer bem as coisas...
(estou a brincar, mas também é a sério: estas coisas precisam de muito tempo para afinarem forma e conteúdo)
abrunho,
eu não estava a acusar ninguém de querer mandar os católicos para as catacumbas. Usei essa imagem - se calhar de forma despropositada - para questionar se a religião se deve tornar algo exclusivamente privado.
Acho que não: os católicos podem organizar-se e falar como católicos (e até fazer abaixo-assinados para pedir referendos), do mesmo modo que os sindicatos, o partido comunista ou os professores, entre muitos outros, o fazem.
Rita,
os teus dois últimos comentários dão um post fantástico. Posso copiá-los para a primeira página?
Podes copiar sempre o que quiseres, mas fixe, fixe era unir esta caixa de comentários com a de lá de baixo, estou a ficar confusa ;)
Fiz de propósito, hehehe.
Só para mostrar como este tema é complexo, hehehe.
E agora vai piorar, com o terceiro post. Hehehe.
Olha, outra coisa completamente diferente: tens alguma espécie de acesso especial aos bilhetes da Berlinale?
Queremos muito ir ver o Metropolis na versão reconstruída a partir daquela fantástica descoberta de uma fita original. Queres ir também?
Quero. Mas outro dia acho que iam mostrar isso já nao sei onde, de graça e tudo...ou estou a confundir?
Não sei se estás a confundir, mas a vantagem de ir à Berlinale é que te podes sentar ao lado do realizador e dos actores principais.
;-)
(estou aqui, estou a mandar cartas de agradecimento ao Machado de Assis)
OK, três bilhetes? Tens maneira de os comprar? Ou trato eu disso?
(e não vais saltar fora no último momento? por causa das relações internacionais e assim...)
Primeiro vejo datas e assim...
Primeiro vejo datas e assim...
PS: As minhas esperanças de me sentar ao lado do realizador sao, neste caso, limitadas ;)
Porquê? Achas que ele ia preferir sentar-se ao lado do Joachim?
;-)
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