25 novembro 2009

tratar de modo diferente o que é diferente

Tenho andado a evitar falar deste assunto, porque é impossível tratar em post um tema que dava vários compêndios. Para mais, quando é um assunto que não oferece respostas únicas.
Contudo, tendo em conta a qualidade dos leitores deste blogue, acho que vale a pena deixar uns apontamentos e levantar algumas questões. Ou me engano muito, ou a parte melhor deste post vai ser a caixa de comentários.

O Presidente da República vetou (e muito bem) a nova lei das uniões de facto, alegando (e muito bem) que era necessário fazer um debate prévio sobre a figura do casamento e a da união de facto.
Das partes do debate a que assisti, nenhuma me respondeu a algumas questões essenciais:


1. Que o casamento civil foi instituído há apenas 150 anos, demarcando-se e simultaneamente decalcando-se do casamento religioso, e que já foi alvo de modificações importantes para reduzir as assimetrias de carácter patriarcal, já sabemos. Ora, tendo sido já objecto de mudanças tão substanciais, porque é que nos custa tanto alargá-lo aos homossexuais?

2. Uma das minhas perplexidades perante esta discussão é a confusão do "casamento como é" com o "casamento como deve ser".
Diz-se que o casamento é o acto fundador de uma família. E é isto uma família tal como pode actualmente ser fundada pelo casamento civil: o homem poderoso que casa repetidamente com noivas cuja idade é sempre a mesma; o idoso com a moça nova ou a idosa com o jovem; os dois septagenários que se conheceram no lar de terceira idade; o "golpe do baú", as múltiplas conveniências; o doente às portas da morte; o homossexual que se quer iludir a si próprio e à sua envolvente social.
Também há os complementos aberrantes, como a surpresa de uma segunda e até uma terceira família paralelas, que se tornam conhecidas no funeral do pai de todos, as mães que escondem ao marido que não é ele o pai biológico da criança (parece que são uns 3,7% na Europa), ou o negócio-à-prova-de-crise da prostituição...
A sociedade convive pacatamente com tudo isto mas, na hora de alargar o casamento a pessoas do mesmo sexo, é um escândalo, e que nos estão a dar cabo do simbolismo, e que o casamento afinal é algo muito sério e indissoluvelmente ligado à ideia da família como lugar de procriação.
Na prática, a realidade do contrato de casamento é esta: basta que um seja homem e o outro mulher, e ambos aptos para a realização desse contrato. Ninguém pergunta nem controla porque casam, para que casam, nada. E está muito bem assim - ou não, conforme a livre opinião de cada um. O que está mal é que se venha alegar que o casamento é algo bem diferente da sua prática actual.

3. Afinal o que é o casamento? Que instituição tão carregada de simbolismo e dignidade é essa, que é recusada aos homossexuais mas permitida a qualquer par de adultos desde que um seja homem e outro mulher?
Pois se é para moralizar, faça-se uma limpeza geral. Não são só os homossexuais que - alegadamente! - podem destruir esse valiosíssimo símbolo.
Dirão: atenta bem no que dizem as Ciências Sociais! E eu pergunto: o que mexe primeiro, a Ciência Social ou a sociedade? São as Ciências Sociais que impõem à sociedade o que pode e o que não pode ser?
Dirão: a Psicanálise, o Masculino e o Feminino! Disto sei pouco, confesso. E fiquei a saber menos desde a semana passada, quando vi esses autênticos esteios da masculinidade, os homens da equipa nacional de futebol alemã, a chorar como umas criançinhas no meio de um estádio... (não estou a criticar, apenas a notar que também aí há muitos tons entre o branco e o preto)
Brincadeiras à parte: as categorias Masculino e Feminino estão radicadas nos orgãos sexuais? E serão razão suficiente para dizer a um casal concreto que o seu amor vale menos, e que não pode aspirar ao reconhecimento social do seu projecto de comunhão de vida como qualquer outro casal?

4. Qual é a diferença entre casamento e união de facto? Se a união de facto se equipara ao casamento, porque é que as pessoas não casam simplesmente? Quais são os motivos que levam à necessidade da existência de duas figuras na prática iguais mas com nomes diferentes?
Se me disserem que a união de facto é importante para os homossexuais, porque não podem procriar, pergunto então porque é que deixam casar pessoas que não podem procriar e, por outro lado, porque é que deixam aceder à união de facto pessoas que podem procriar e, portanto, casar.
Provocação: criem-se três figuras diferentes - casamento, união de facto (para os casais incapazes de procriar mas que fazem questão de celebrar um contrato em tudo semelhante ao do casamento, excepto na procriação), ajuntamento (para os que querem viver juntos sem qualquer tipo de contrato).
E outra provocação: sugiro que todos os pares que queiram (e possam) casar comecem por celebrar uma união de facto, automaticamente transformável em casamento após (e só após) o nascimento do primeiro filho.

5. Como é que o legislador define os conteúdos do contrato de casamento?
Concretamente: é movido pelo desejo de moldar a sociedade, ou de criar um quadro legal para a realidade social do nosso tempo?
Um exemplo, à luz da realidade actual: se o objectivo principal do casamento civil é criar um enquadramento desejável para a procriação, não está o próprio legislador a criar um estigma para os filhos existentes fora do casamento? Se houvesse hoje realmente uma intenção de proteger as crianças, não deveria o legislador recorrer a outras formas?
A este propósito, o Miguel Silva oferece algumas sugestões sérias.

Acrescento dois desvarios, só para provocar outra vez:
- O interesse das crianças passaria pela autorização da poligamia, que é em - infelizmente - variadíssimos casos a única maneira de permitir que as crianças vivam sob o mesmo tecto com o pai e a mãe. Não sei é se o ambiente familiar seria muito estável...
- Imponham-se mais deveres ao pai: por exemplo, diga-se que é o pai o responsável pelo acompanhamento da criança doente; sempre que a mãe faltar ao trabalho devido a doença da criança, desconte-se um dia do salário do pai - mas pague-se integralmente se for ele a faltar ao trabalho. Isto sim, era um progresso!

6. As garantias dadas por um contrato de casamento têm implicações para terceiros. Não apenas as questões patrimoniais, mas também os serviços de Segurança Social, os contratos de arrendamento, etc.
Eu aceito que um casal que está a tentar ter ou já tem filhos seja objecto de um certo apoio por parte da sociedade. Não entendo é porque é que eu, terceira indirectamente implicada no quadro de apoios estatais e de solidariedade social, devo contribuir para estes apoios no caso de um casal heterossexual sem filhos. Ou melhor: porque é que o simples facto de ser um casal heterossexual permite aceder a quadros de apoio que são negados aos casais homossexuais?
Um exemplo simples: uma estrangeira pode facilmente casar com o namorado e receber direito de residência no país deste; um estrangeiro não pode casar com o namorado. Ao primeiro casal ninguém exige que haja amor ou que tenha filhos - basta que um seja homem e o outro mulher.
Outro exemplo: se, no decurso de um doença prolongada e fatal, o idoso decidir casar com a empregada doméstica que ao longo das décadas o serviu com todo o desvelo, a sociedade comove-se e aplaude. Mas se em vez de um idoso for uma idosa, a empregada que se arranje como puder.
Se isto não é uma injustiça!

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