03 novembro 2009

manual de maus costumes

Eu sei que o assunto não é propriamente actual, e até pensava que ia passar por ele em silêncio, mas a expressão "manual de maus costumes" continua a incomodar-me.

Para já, deixem-me explicar que as afirmações do Saramago não me ofendem como católica, mas como ardorosa crente na infalibilidade dos prémios Nobel. É que fica mal, caramba, fica-lhe mesmo mal dizer as coisas assim. É um prémio Nobel da Literatura, não é o adolescente que venceu o concurso de cartazes lá da escola dele.

Quem é que se lembraria de afirmar que a Bíblia é um manual? Um manual?!
Se fosse um ultra-fundamentalista, talvez compreendesse - são desvios, enfim, é lamentável mas temos de ter alguma paciência.
Agora, uma pessoa com a cultura e a experiência literária do Saramago?!
É uma desilusão, pronto.

A Bíblia não é um manual. É o registo, com vasto recurso ao poético e ao simbólico, de uma intuição sobre Deus, uma busca de sentido. Uma intuição que se vai formando no seio de determinados ambientes históricos e culturais. Para a saber interpretar, é preciso conhecer o meio e procurar a intenção.

Um post divertido que o José Bandeira escreveu há tempos (enfim, chamar divertidos aos posts do Bandeira ao Vento é um pleonasmo, desculpem) serve bem como exemplo do que se pode ler na Bíblia:

Um Deus omnisciente não perguntaria “Adão, onde estás?”, ele diria “Adão, tens dois segundos”.

Num registo sério, o que interessa neste episódio não é a omnisciência de Deus, mas a afirmação da liberdade do Homem. "Onde estás?", essa frase tão recorrente nas conversas dos antigos amantes quando os caminhos começam a separar-se:
Onde estás tu agora? Que lugar tenho eu na tua vida?

O leitor, crente ou não, pode olhar para esta passagem como uma pista que abre horizontes. Mas também pode optar por se prender ao literal e aproveitar para tirar conclusões sobre a Bíblia ser uma trapalhada incongruente, quod erat demonstrandum, ou então para fazer uma boa piada.

***

Mas eu não desisto assim facilmente do Saramago. Imagino que o que ele queria dizer era isto: "Sendo tomada à letra, a Bíblia é um manual de maus costumes".

(Isto sou eu a tentar conseguir um lugar de tradutora das entrevistas de Saramago para português...)

Ah, assim sendo, estamos entendidos, e do mesmo lado da barricada. O Saramago, eu, e mais alguns cristãos que se irritam com o modo como a Bíblia é treslida para apoiar estratégias de domínio das consciências.

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