08 abril 2009
Yehudi Menuhin
Da autobiografia de Marcel Reich-Ranicki*, Mein Leben:
(tradução – já me conhecem – apressada e nem sempre fiel, que a minha vida tem mais duas ou três prioridades, para além de querer partilhar convosco estes bocadinhos de história e filosofia)
Quando ouvi o nome Menuhin pela primeira vez – era eu ainda criança e viera recentemente para Berlim – já o adjectivo “divino” era usado. Alguém contou na nossa sala, seria por 1930, que o músico de 13 anos tocara com a Filarmónica de Berlim, e citava Einstein: “agora sei que existe um Deus no céu”.
(...)
Uma década mais tarde, quando Tosia e eu já éramos obrigados a vegetar no gueto, recebemos um convite, por intermédio de um amigo, para um sarau onde se ouviriam alguns discos. O nosso anfitrião, pouco mais velho que nós, já era casado. No seu quarto estreito sentavam-se no chão sete ou oito pessoas. Ouvimos Berlioz e Debussy. A seguir, fui atingido por um raio: o que me arrebatou e comoveu foi um concerto para violino (mais exactamente: o seu primeiro andamento) que naquela altura ainda não conhecia – o nº 3 em Sol maior, tocado por Menuhin. Fiquei sem palavras. Ainda hoje gosto muito desta peça, e penso que ninguém a tocou melhor que o jovem Menuhin.
No caminho de regresso a casa, pelas ruas apinhadas e horrorosas do gueto de Varsóvia, falámos dos nossos generosos anfitriões. Invejávamo-los. Porque tinham o disco com aquele concerto, e ainda algo que era um grande sonho nosso: um quarto só deles, escassamente mobilado, é certo, mas com uma cama. Ambos pensávamos no mesmo. Se bem me lembro, resistindo aos berros constantes e estridentes dos vendedores ambulantes e dos pedintes, citei aquele verso de Shakespeare onde se diz que a música é o alimento do amor.
A primeira vez que vi Menuhin foi em 1956, em Varsóvia. O “degelo” permitiu que, pelo menos durante algum tempo, músicos e actores famosos viessem à Polónia. Vieram todos: de Leonard Bernstein e Arthur Rubinstein até Gérard Philipe e Laurence Olivier, e, como disse, Menuhin. A sala estava esgotada. Nos corredores da Filarmonia de Varsóvia, recentemente construída, aglomeravam-se estudantes que tinham comprado bilhetes a preço muito económico para poderem assistir ao concerto em pé. O palco enorme, que tinha espaço para uma orquestra filarmónica e um grande coro, estava completamente vazio. Nem um piano havia, dado que no programa só constavam sonatas de Bach e Bartók para violino solo.
Menuhin avançou rapidamente pelo palco. Depois do estrondoso aplauso, fez-se um silêncio inquietante. Tensos, esperavamos aquele som encantado que só conhecíamos dos discos, e ia ser agora, finalmente chegara o momento de o ouvir ao vivo. Mas Menuhin baixou o violino. A princípio, ninguém entendeu porque é que ele não iniciou a peça, o que é que ele pretendia enquanto acenava com o arco de forma amigável: estava a convidar as pessoas encostadas às paredes e de pé pelos corredores para virem ter com ele e sentarem-se no chão do palco – e todos obedeceram, hesitando primeiro, apressando-se depois. Esta imagem ficou-me gravada para sempre: centenas de jovens sentados no chão, e no meio deles um homem magro, para o qual todos olhavam.
(...)
Lembro-me de duas perguntas que fiz a Menuhin durante essa viagem de comboio [em 1960]. Queria saber quem, em sua opinião, era o maior violinista vivo. A resposta veio imediatamente: David Ojstrach – e acrescentou: “há nele um violinista cigano”, com o que se referia, obviamente, ao temperamento de Ojstrach, à alegria com que tocava e à sua originalidade. Para que eu não o entendesse mal, disse Menuhin a rir, em cada grande violinista há um pequeno cigano. Depois falámos da monotonia da existência de um músico virtuoso. Naquela altura, ele viajava de cidade em cidade e interpretava todas as noites, acompanhado pela sua irmã, uma sonata de Beethoven e outra de Brahms. Se isso, repetido ao longo de várias semanas – perguntei-lhe eu -, não acaba por se tornar esgotante com o tempo e, o que me interessava ainda mais saber, até maçador. Menuhin reflectiu apenas um instante, e deu-me uma resposta de uma grande simplicidade, e mesmo banal. Mas que eu não esqueci. Disse ele: “Se realmente dás o melhor de ti todas as noites, nunca se torna maçador.”
(...)
[Em Beijing] vejo um homem branco que, acompanhado por um tradutor tal como eu, avança na minha direcção. É Yehudi Menuhin. O encontro ocasional naquela cidade gigantesca supreende-nos, eu quedo-me mudo.
O que faz ele aqui, pergunto-lhe. “Beethoven e Brahms, com a orquestra local”, é a resposta breve. E o que faço eu? “Palestras sobre Goethe e Thomas Mann”. Menuhin fica por uns momentos silencioso, e depois comenta: “Pois é, somos judeus.” E, depois de uma curta pausa: “É normal que viajemos de terra em terra, divulgando e interpretando a música e a literatura alemãs”. Encaramo-nos pensativos, em silêncio e talvez com melancolia. Dois ou três dias mais tarde assisto ao seu concerto de Beethoven em Hong Kong. Os críticos dizem que já não é tão brilhante, já não toca com a perfeição de outrora. Contudo, Menuhin não era a perfeição, era aquele divino de que Einstein falara.
A 22 de Abril de 1986 Menuhin festejou o seu 70º aniversário. Pouco depois fizeram-lhe uma bela festa na Redoute de Godesberg. Foram convidados músicos do mundo inteiro, e também alguns políticos alemães importantes. Pediram-me que fizesse um pequeno discurso. Escolhi o tema que preenchera a vida de Menuhin, “Música e Moral”. A música, disse eu, é uma deusa – e a mais gloriosa de todas as que conhecemos. Infelizmente, ao longo dos séculos e dos milénios pôs-se ao serviço de todos os que a quiseram usar: os poderosos e os políticos, os ideólogos e, naturalmente, os religiosos. Por muito que nos custe a aceitar – a música é uma prostituta, e de todas a mais sedutora. Com música se criou temor a Deus, se despertaram sentimentos patrióticos, e se enviaram homens para a batalha e para a morte. Melodias foram cantadas simultaneamente por escravos e pelos seus capatazes, por prisioneiros em campos de concentração e pelos guardas do campo. As pessoas com quem, naquele quarto exíguo do gueto de Varsóvia, ouvi o disco do concerto para violino em Sol maior tocado por Yehudi Menuhin – todas elas foram gaseadas. A relação original entre música e moral não passa de um voto bem-intencionado, um preconceito fácil.
E Menuhin? Em qualquer situação e com firme coerência, entendeu sempre a arte e a vida, a música e a moral, como uma unidade ou, melhor dizendo: fez questão de as entender como uma unidade. Nunca desistiu de divulgar e exigir esta síntese, e ele próprio a viveu exemplarmente durante mais de meio século. Tentou tornar o violino uma arma contra a injustiça e a miséria do nosso mundo. Em criança, tinha a certeza – como conta frequentemente – que com a Chaconne de Bach ou o concerto para violino de Beethoven se pode tornar as pessoas, se não boas, pelo menos melhores. Admito que continuou a acreditar nisso até à sua morte, a 12 de Março de 1999.
(*) Marcel Reich-Ranicki, crítico literário, conseguiu uma formidável proeza: um programa de literatura na televisão, o “quarteto literário”, que era uma espécie de mesa redonda onde quatro pessoas falavam sobre livros - sem filmes, sem animação de espécie alguma para além da das palavras ditas. Foi um sucesso.
Recentemente foi-lhe atribuído um prémio de televisão, que ele se recusou a receber, irritado que estava com os disparates que fora obrigado a assistir durante a gala de entrega dos prémios. O apresentador da gala, o famoso entertainer Thomas Gotschalk, ofereceu-lhe um programa especial, de meia hora, onde poderiam falar com mais calma sobre televisão e entertainment.
Uma meia hora abençoada, onde Marcel Reich-Ranicki afirmou que a lógica do lucro na televisão não é a única desculpa para toda a mediocridade que a atravessa. Um Shakespeare, dizia ele, estaria em condições de fazer um programa divertido, com um êxito estrondoso, e simultaneamente com qualidade.
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E já que Menuhin falou neste violinista, aqui têm a mesma peça tocada por Ojstrach (ou Oistrakh, bem podiam fazer um acordo ortográfico mundial sobre nomes, para a gente se entender)
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