Reza a lenda que, quando o arcanjo fechou a Eva e Adão as portas do paraíso, Deus se entristeceu com a sorte destes. Num impulso, mandou os anjos arranjarem na terra um lugar aprazível e belo, quase igual ao jardim do Éden. Belo, mas não perfeito - para que o Homem recordasse o paraíso sem lhe perder a saudade.
Os anjos partiram, e fizeram exactamente o que lhes tinha sido ordenado.
Foi assim que nasceu o Engadin.
A cidade mais conhecida, St.Moritz, terá sido bonita em alguma altura da sua vida, mas agora tem uma parte, junto ao lago, que mais parece o Algarve. Ainda bem que na Suíça também se fazem esses erros, uma pessoa não se sente tão só na palermice da depredação em nome do turismo.
Nós ficámos em Samedan, uma localidade sujeita a regulamentos rigorosos de construção. As casas novas são poucas e não destoam, e as antigas são lindíssimas, com as suas janelinhas em masseira para aproveitar o máximo da luz do dia sem perder muito calor, as suas paredes ornamentadas com sgraffiti.
Amigos nossos, judeus sobreviventes do Holocausto, emprestaram-nos a sua casa. Quando ia começar a fazer o primeiro almoço lembrei-me do pequeno pormenor: judeus. Carne de porco. O Joachim telefonou aos nossos amigos, "- podemos cozinhar carne de porco nas vossas panelas?", "- não, preferia que não o fizessem, por causa do nosso filho que é ortodoxo". Ia meter o presunto no frigorífico, mas lembrei-me de novo. O Joachim telefonou outra vez, "- podemos guardar presunto e fiambre no frigorífico, desde que bem embrulhado?", "- não me voltem a ligar, prefiro não saber nada disso!"
Não sabem eles, mas sabemos nós. O filho tem um tumor no cérebro, e acredita que a Fé o vai salvar. De modo que passámos uma semana a comer fiambre directamente do pacote, com todo o cuidado para não contaminar pratos e talheres.
A rota fora escolhida cuidadosamente: de pista azul em pista azul, até ao ponto de encontro combinado, atravessando uma paisagem de espanto, com o lago de St.Moritz a brilhar no meio da neve.
Quem me mandou esquecer o aviso da lenda?
No meio da perfeição, a pista azul atravessava uma pista negra, e eu dei comigo numa encosta íngreme como nunca vira, e coberta de gelo. Aterrorizada, deixei-me cair, travando com os esquis espetados no gelo e tentando usar os batons para lutar contra nem sei que forças da Física e do psíquico.
Comecei a pedir ajuda em todas as línguas que conheço, piangente, piangente, mas o pessoal também estava numa pista negra e passava por mim sem sequer se aperceber da aflição.
Ao fim de várias eternidades, um rapaz parou ao meu lado.
"Do you speak English?", perguntou ele, e eu a pensar "I do, I do, só não sei muito bem distinguir entre savior e rescuer".
O problema é que aquele era o seu primeiro dia sobre esquis - dava para os gastos dele, mas manifestamente não para os meus.
Foi pedir ajuda, mandaram-no tirar os esquis e vir-me buscar, ele assim fez, e quando chegou ao pé de mim, animado e optimista, começou a escorregar e só parou ao fundo da encosta. Parecia o Shining.
Ao fim de mais algumas eternidades, parou outro homem, que se prontificou a avançar ao meu lado, travando com os esquis dele eventuais escorregadelas minhas. E assim nos pusemos em movimento, e assim íamos avançando à velocidade de vários centímetros por hora, que era o que o meu terror permitia. Para me apressar, ele começou a empurrar-me. Só que - já contei? - aquela encosta era íngreme como tudo, e ele estava da parte de baixo. Para me empurrar pela cintura, teria de se pôr em posição de estátua da Liberdade - o que não dá jeito quando se está a tentar salvar alguém numa pista negra. De modo que ele teve de optar por me empurrar pelo meu segundo óptimo, digamos assim, e eu percebi logo muito melhor aquela história da síndrome de Estocolmo.
(a foto foi tirada daqui)
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