Miguel,
A tua resposta ajudou-me a ver com mais clareza.
Acho que andei a misturar duas coisas diferentes: contrato de casamento e relação afectiva.
Fui consultar o meu Código Civil (de 1982 - não sei o que entretanto terá mudado), onde se lê, no artigo 1577º: "casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código."
E depois vêm os deveres (artigo 1672º: "Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência"), seguidos de inúmeros artigos sobre filhos e bens.
Não encontrei lá o menor traço de afectividade.
Na celebração do casamento não se pergunta a cada um dos noivos "hoje tens-lhe um grande amor?", mas: "tens a certeza que sabes no que te estás a meter, e tens a certeza que queres comprometer-te a isso?"
Vendo a partir desta perspectiva, parece-me que a revisão da lei do divórcio pôs o carro à frente dos bois.
Era preciso discutir primeiro o casamento (e não vou falar da parte sobre "pessoas de sexo diferente").
De que falamos quando falamos de casamento?
Daquele romântico "que seja infinito enquanto dure" do Vinicius, ou de um conjunto de obrigações em que incorre quem assinar esse contrato, uma troca de garantias entre os contraentes?
Penso que o processo legal do divórcio é mais a rescisão de um contrato que o anúncio oficial do fim de uma relação sentimental.
Acho positivo que se torne mais fácil assumir para os efeitos legais que uma relação acabou.
Mas, por outro lado, o que se passa com as obrigações e o seu não cumprimento? Vamos alterar o artigo 1672º para: "os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres desejáveis, mas facultativos, de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência"?
(ai! acho que contraí telepatia com o Cavaco Silva: escrevi isto, para descobrir depois que ele diz o mesmo no ponto 5 do seu veto)
Quer dizer: ao desvincular o faltoso da sua culpa (de não cumprimento do estabelecido num contrato), mais vale nem sequer realizar o contrato.
E já que falei do veto presidencial, vejamos melhor o ponto 6.
Não compreendo aquela história da mulher a apanhar forte e feio e a querer continuar casada. A não ser que a intenção de quem escreveu o veto fosse dizer que uma pessoa (não é preciso achar que é sempre a mulher), se foi vítima de violência doméstica, quer que a repartição dos bens no decorrer de um processo de divórcio tenha em conta o comportamento do cônjuge, em vez de ter de recorrer a um processo judicial para receber uma indemnização.
No mesmo ponto, e logo a seguir, a parte em que se refere a nova redacção do nº 2 do artigo 1676º fez-me imaginar neste cenário: faz de conta que eu fazia questão em não arranjar emprego porque prefiro gastar o do meu marido a ganhá-lo eu, não dava o necessário apoio aos filhos, nunca punha o jantar na mesa a horas decentes para os ritmos familiares, e de caminho arranjava um namorado. Pedia o divórcio, e como tinha sido a parte prejudicada no casamento, já que me vira obrigada a não trabalhar para dar assistência à família (diria eu), o desgraçado do meu ex-marido tinha de me dar uma choruda recompensa.
(Também é verdade que, neste caso, ele pagaria isso e muito mais de bom grado só para se livrar de mim...)
Queremos uma lei que permita este tipo de situações?
A minha primeira pergunta no post anterior padece dessa confusão entre a vida afectiva de um casal e as obrigações contratuais do casamento civil.
Muitas das discussões realizadas andaram também à volta dessa confusão. Em especial a questão da culpa. Não se trata da culpa no fim da relação afectiva, mas no não cumprimento de um ou de vários deveres que foram aceites de livre vontade ao celebrar o contrato de casamento.
Na tua última frase também não se estabelece bem a diferença:
"De resto, dar as coisas por garantidas é um excelente caminho para sufocar lentamente (às vezes não tão lentamente como isso) a saúde de uma relação."
Completamente de acordo, se as "coisas dadas por garantidas" de que falas são os sentimentos e a disponibilidade do parceiro.
Contudo, no que diz respeito aos deveres, nunca corres o risco de os dar por garantidos, porque são uma exigência que fazes a ti próprio, e são resultado de consciencialização e conquista pessoais e quotidianas.
Quem diria que um texto legal tão pouco romântico fornece padrões tão importantes para a saúde de uma relação?
***
No entretanto, informei-me: as regras do jogo que vigoravam quando eu me casei na Alemanha já não são válidas.
Como eu sou um bocado maluca, provavelmente teria feito tudo da mesma maneira, e depois logo se vê.
Mas, por uma questão de princípio, não acho bem que mudem as regras a meio do jogo. Não podiam mudá-las para casamentos celebrados a partir da data de entrada em vigor da nova lei?
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