10 maio 2008

um outro Maio



Há 75 anos, a Alemanha escurecia à luz de fogueiras grandiosas, numa gigantesca encenação para fazer a apologia do bom e glorioso e imortal espírito alemão, acção conjunta do Ministério de Propaganda e organizações de estudantes.



Estas coisas preparam-se com cuidado. Foram pedidos manifestos a vários escritores (a maior parte do quais alegou falta de tempo para escrever); foram instalados pelourinhos em frente às universidades, para punir simbolicamente os professores e autores que traíam o espírito alemão; foram organizadas sessões solenes nas Faculdades, contando com a presença de professores e estudantes; realizaram-se cortejos triunfais para manifestar o repúdio pelos traidores.




E as fogueiras, com início marcado para o dia 10 de Maio.

Antes de atirar os livros ao fogo, havia uma proclamação que explicava o motivo pelo qual se entregavam os livros daquele autor às chamas purificadoras:

1ª Chamada: Contra a pregação da luta de classes e contra o materialismo, pela nação e pelo nosso estilo de vida ideal! Entrego ao fogo as obras de Marx e Kautsky.

2ª Chamada: Contra a decadência e a decomposição moral, pela moral e pelos bons costumes, entrego ao fogo as obras de Heinrich Mann, Ernst Glaeser, E. Kästner.

3ª Chamada: Contra a degradação da mentalidade e a traição política, pela dedicação ao povo e ao Estado! Entrego ao fogo as obras de F. Wilhelm Förster.

4ª Chamada: Contra a sobrevalorização dos instintos que destrói o espírito, pela nobreza da alma humana! Entrego ao fogo as obras de S. Freud.

5ª Chamada: Contra a falsificação da história e o desrespeito pelas suas grandes personagens, pela veneração do nosso passado! Entrego ao fogo as obras de E. Ludwig e W. Hegemann.

6ª Chamada: Contra o jornalismo inimigo do povo, de inspiração democrático-judaica, pela colaboração responsável no trabalho de construir a nação! Entrego ao fogo as obras de Theodor Wolff e Georg Bernhard.

7ª Chamada: contra a traição literária que atingiu os soldados da guerra mundial, pela educação do povo no sentido da defesa nacional! Entrego ao fogo as obras de Erich Maria Remarque.

8ª Chamada: contra o obscurecimento e o estropiamento do idioma alemão, pelo cuidado do valor mais precioso do nosso povo! Entrego ao fogo as obras de Alfred Kerr.

9ª Chamada: contra o atrevimento e a arrogância, pelo respeito e a veneração do imortal espírito alemão! Entrego ao fogo as obras de Kurt Tucholsky e Ossietzsky.


(Cá vai a nota do costume: fiz esta tradução à pressa. É que este fim-de-semana há Karneval der Kulturen, e enquanto escrevo isto estou a perder a festa. São cinco palcos em simultâneo, com música e dança do mundo inteiro, e gente de todas as cores e proveniente de todas as culturas a saborear em conjunto a riqueza das diferenças. Apenas 75 anos depois de universitários terem queimado os livros que danificavam o imortal e glorioso espírito alemão. Tem tudo a ver.)

(Cá vai mais uma nota: faltam maiúsculas. Comecei a escrevê-las, mas tenho uma espécie de alergia a textos com tantas maiúsculas. Talvez até alergia a épocas com tantas maiúsculas. Também pela ortografia se percebe que não eram bons, esses velhos tempos.)



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