Não é a primeira vez que fico perplexa quando se começa a discutir nos blogues a liberdade de expressão - e o debate à volta do blogue humorístico de um assistente universitário vem confirmar esta minha sina.
Seja-me permitido, então, pôr aqui uns rascunhos de ideias, que é o mais que consigo alinhavar perante uma questão tão complexa.
1. Humor
Num post no blogue Da Literatura, João Paulo Sousa começa por dizer que "poderia aqui falar da dificuldade que tanta gente na nossa sociedade continua a sentir quando tem de se confrontar com o humor (e não cabe definir se ele é de bom tom, mas apenas lembrar como todos nós empobrecemos quando restringimos a sua expressão)".
Será que empobrecemos realmente quando restringimos a expressão do humor?
Vamos então à "casuística":
- qual é a diferença entre uma mulher e uma bicicleta? uma enche-se primeiro e monta-se depois e a outra monta-se primeiro e enche-se depois;
- era uma vez um rapaz, filho de um judeu e uma árabe, que tinha um grande dilema: ao encontrar uma mota à porta do prédio ficou sem saber se havia de a roubar ou de a vender;
- numa viagem de carro, o acompanhante do condutor começou a gritar "olha aquele preto! olha aquele preto!" e daí a pouco suspirou de alívio, "estava a ver que não o atropelavas...";
- depois, há aquela história do europeu que ia a África caçar minões;
- e também há anedotas sobre pessoas a atirar-se do WTC, ou judeus em Auschwitz, mas podemos ficar por aqui.
Não me parece que fiquemos muito mais pobres quando nos dispensamos de contar anedotas como estas, ou criticamos abertamente quem as conta.
Aí está uma primeira perplexidade: como equacionar de um lado "os perversos processos de censura e de autocensura" e do outro o direito de exprimir livremente o meu repúdio perante este tipo de anedotas e o carácter revelado por quem as conta?
E como reagir perante certos tipos ou contextos de humor?
Por exemplo, este filme, a que assisti com crescente desconforto, embora me tenha fartado de rir:
Podemos dizer que a Paris Hilton, que conseguiu um lugarzinho no pódio das estrelas jogando com a publicidade dos escândalos da sua vida privada, estava a pedi-las.
E esta a fazer cadelinha, que nem nome se lhe conhece, também está a pedi-las?
Qual é a diferença entre a atitude da Paris Hilton e a da cadelinha? Porque é que num caso as pessoas aplaudem quando ela é ridicularizada em público, e no outro defendem a liberdade de expressão, a tolerância, a atitude de "viver e o deixar viver"?
Passando para o caso do assistente universitário: se os colegas ou superiores lhe dizem na cara que o seu blogue é desprestigiante, está mal, porque é um acto insuportável de censura e abuso de poder.
Mas se alguém se lembrasse (ou fosse pago para isso..) de criar um novo personagem, tipo Toni Silva "é roubado", ou Diácono Remédios "não havia necessidade", um Manuel Juiz a rir com ar de tosco "ópraminhe, acho-me tão engraçado", então aí era humor, era a liberdade de expressão que nos enriquece a todos?!
É por aí que vamos? Da próxima vez que houver um problema na Universidade, em vez de se falar directamente com as pessoas envolvidas, arranja-se maneira de as ridicularizar numa festa da Queima da Fitas?
"É a brincar, ninguém leva a mal"?!
Cambada de cobardes.
2. Imunidade
A discussão em curso sobre aquele blogue "humorístico" reforça a minha sensação de que alguns defensores da liberdade de expressão falam dela como se fosse uma espécie de Catch 22 ao contrário - não se sabe o que é e se existe, mas garante imunidade. E que querem levar esse direito a este extremo: basta-me invocar esse direito para exigir que a sociedade me defenda das consequências do que eu própria disse. É verdade que exibi a minha idiotice no seu estado mais puro, mas como estava a exercer o meu direito de me expressar livremente, não me podem perseguir.
A realidade é mais assim: quem diz em público o que quer, arrisca-se a que os ouvintes tirem conclusões e ajam em conformidade.
Aliás, é ainda pior: já ouvi na Alemanha e nos EUA avisos - sobretudo aos adolescentes - para terem cuidado com os conteúdos dos seus sites na internet, porque é mais que certo que no futuro, e mesmo que seja daqui a 30 anos, o empregador faça uma pesquisa na internet antes de os convidar para uma entrevista.
E agora? Como é que vamos impedir os empregadores de pesquisarem o que as pessoas puseram (voluntariamente!) na net, antes de decidirem quem convidam para uma entrevista de emprego? Com que meios vamos obrigar os empregadores a respeitar essa tal liberdade de expressão, e a dissociar do curriculum vitae as conclusões tiradas do que leram nas páginas "privadas" publicadas na internet?
A realidade compadece-se pouco do mito da liberdade de expressão.
O autor desse blogue, provavelmente, nunca teria arranjado emprego como assistente universitário se o seu blogue já fosse conhecido quando concorreu ao lugar. E se insiste em manter o blogue e o tipo de humor, alguma outra universidade lhe vai oferecer um lugar? Alguém o vai ajudar a progredir na carreira?
Não acredito na liberdade de expressão como garantia de imunidade: um professor de uma Faculdade de Sociologia, que tem um blogue onde faz humor deste tipo sobre funcionários públicos e estudantes (e é só um exemplo), vai arranjar problemas na Academia - ninguém põe em causa o seu direito de escrever o que lhe apetecer, mas muitos podem começar a duvidar que a Universidade seja o lugar adequado para ele. Do mesmo modo que os arranjaria um jovem assistente numa Faculdade de Arquitectura que tivesse um blogue para dar livre curso ao seu desejo inexorável de desenhar casas tipo maison, ou um médico, professor de Medicina, que tivesse um blogue para contar anedotas escabrosas de doentes e hospitais.
Ou já têm um percurso académico inatacável (e mesmo nesse caso...), ou perdem credibilidade de uma forma que pode ser irreversível.
3. A liberdade de expressão como suporte da cidadania
Uma questão bem diferente foi o exemplo dado pelo Lutz: ao expor publicamente as suas opiniões na época em que o país se dividiu a discutir o aborto, correu o risco de perder clientes mais conservadores. Contudo, entendeu que o seu contributo podia enriquecer o debate e era uma causa pela qual se justificava correr riscos. Pensou muito, discutiu, argumentou bem. E eu, que muitas vezes não concordei com ele, gostei de o ler e de reflectir sobre a sua argumentação. Se ele tivesse perdido clientes por causa disso, pedir-se-ia aos defensores da liberdade de expressão que fizessem tudo o que estivesse ao seu alcance para reduzir os danos, arranjando-lhe clientes novos.
O problema é que nunca se poderia provar que ele foi castigado devido às suas opiniões nesse debate. O motivo oficial seria um incumprimento qualquer, vários meses mais tarde...
De igual modo, todos sabem mas é difícil provar que certas dificuldades na progressão da carreira (académica ou outras) derivam do facto de o sujeito em causa ser comunista, ou da Opus Dei. Mesmo os casos mais flagrantes ficam sem consequências.
Se fosse em Cuba ou na Coreia do Norte, para usar os exemplos do Eduardo Pitta, era muito mais fácil fazer o diagnóstico: a irreverência, a liberdade de pensamento e a inteligência crítica pagam-se com pena de prisão.
Na nossa sociedade, onde os mecanismos de coacção são mais difusos, exige-se que a defesa da liberdade de expressão - daquela que me parece que vale a pena defender: quando o discurso é fruto de um genuíno esforço intelectual para enriquecimento do debate, em vez de ser apenas mais ruído - seja feita de uma forma inteligente e dinâmica. Não pode ser apenas o papaguear de uma fórmula cada vez mais gasta e vazia.
4. A propósito: riscos da bloga
E se eu concorrer a um emprego, e se me perguntarem se tenho um blogue?
Devo mentir, por temer que algo do que escrevi nos últimos quatro anos não agrade ao empregador?
E se o meu blogue fosse anónimo? E se descobrissem a minha verdadeira identidade, e a divulgassem?
Um blogue anónimo tem o estatuto jurídico de uma carta anónima, ou o de um diário secreto? E se é secreto, porque é que o faço acessível ao mundo inteiro?
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