O modo como a Arábia Saudita está a lidar com jihadistas foi tema de um artigo que achei muito interessante, saído num jornal berlinense, "der Tagesspiegel", a 21 de Fevereiro de 2008. (Aqui o original, em alemão)
Reconheço que isto não é propriamente reagir em cima do acontecimento. Em minha defesa posso adiantar que mais vale tarde que nunca, que andei ocupada com outras questões, e que a altura em que sai o vídeo do oportunista do Wilders também é boa altura para mostrar outros aspectos do Islão.
Posto isto, cá vai como de costume: rapidinha e resumida.
Como é que se "desarmadilham" fanáticos muçulmanos?
Com terapia artística e aulas de religião.
A Arábia Saudita envia para reeducação homens que combateram no Iraque.
Por Andrea Nüsse, em Riad
"O Islão quer que nós matemos?", pergunta o professor.
Murrafah al Faifi levanta logo a mão e responde: "Não."
O professor sorri e escreve a resposta no quadro.
Onze alunos estão sentados em três filas de cadeiras. A sala podia ser uma sala de aulas de uma escola de adultos, mas a cena tem algo de surrealista: Murrafah al Faifi e os outros alunos têm a longa barba dos islamistas. Estes homens queriam, não vai há muito tempo, ser combatentes islâmicos, jihadistas, lutando no Iraque contra shiitas e americanos e talvez até na Arábia Saudita contra a sua própria monarquia, cuja proximidade em relação aos EUA desagrada a muitos radicais.
Esta sala de aulas faz parte de um centro de reabilitação criado pelo governo, destinado a jihadistas e aos seus simpatizantes. Aqui, no que já foi um equipamento turístico a 30 km de Riad, dá-se a estes homens - que ainda há pouco estavam dispostos a morrer por motivos religiosos - a possibilidade de uma nova aproximação à sua religião.
"Eu pensava que era o meu dever religioso ajudar os irmãos no Iraque", conta Mufarrah al Faifi, de 28 anos.
Depois da primeira aula, Mufarrah senta-se no jardim. Três quartos, cozinha e quarto de banho construídos à volta de um espaço relvado. Também há uma rede de volley ball e uma mesa de ping pong. Os 11 homens vivem aqui, dormem em colchões no chão, apenas separados por armários. Uma tenda de beduínos serve de sala de estar, e é aí que fazem as cinco orações diárias. As refeições são preparadas por cozinheiros asiáticos num edifício próximo.
No conjunto, cinco grupos de jihadistas são sujeitos a um programa de reeducação de dois meses, que tem como objectivo retirá-los ao ideário radical. São sobretudo homens que - ainda - não cometeram nenhum crime grave. Os suspeitos de terrorismo, esses, são perseguidos sem piedade e enviados para as prisões.
A história de Mufarrah é semelhante à de muitos jihadistas. É um homem simples. Frequentou a escola durante alguns anos, mas os programas escolares na Arábia Saudita concentram-se em instruções religiosas. Não aprendeu muito mais que isso. Durante muito tempo foi desempregado. Por vezes deslocava-se ao Yemen para comprar "qat", que vendia depois.
Um dia viu um filme sobre as guerras na Tchetchenia e no Iraque e sobretudo sobre o que nesses países faziam a muçulmanos - a muçulmanos sunitas como ele. Culpados eram não apenas os americanos, mas também os shiitas. Mufarrah ficou chocado e tomou imediatamente uma decisão: queria combater os shiitas. Na realidade, nunca tinha visto nenhum, mas não tinha dúvidas de que eram eles os traidores. Os que não cumprem o prometido, os que matam crianças e sunitas. Por isso, diz ele, foi para um campo de formação no Yemen.
Não responde à pergunta "quem o enviou para lá? quem o contactou?" - talvez porque o psicólogo do campo está a ouvir atentamente.
O resto da história conta-se depressa: Mufarrah al Faifi foi capturado e condenado a ano e meio de prisão devido a passagem ilegal da fronteira e formação paramilitar.
"O Islão é uma religião do amor", diz Mufarrah. Para ele, isto é uma novidade. Parece realmente entusiasmado. E ensina: o Corão e as histórias da vida dos profetas ensinam que os cristãos e os judeus são "povos do livro" e por isso devem ser estimados. Embora isto seja um dado adquirido, uma pessoa quase não acredita nos seus ouvidos, se é dito num país onde a interpretação islâmica wahabista radical diaboliza o Ocidente.
Um dos objectivos principais do programa é corrigir o conceito que estes homens têm de Jihad. Porque a maioria deles não sabe que o conceito de guerra religiosa está sujeito a condições.
"Posso realizar em qualquer momento a Hadsch, a grande peregrinação?", é a pergunta retórica do professor, bem ciente que aqueles homens sabem perfeitamente que ela só se pode realizar em alguns dias do ano. E continua: "Do mesmo modo, há um tempo para a Jihad". Em primeiro lugar, é preciso ter a autorização do chefe, ou seja, do rei e dos principais religiosos. Em segundo lugar, a autorização dos pais. "Vocês pediram autorização aos vossos pais?", pergunta ele, e os alunos respondem naturalmente "Não". Em terceiro lugar, o governo iraquiano fez um acordo com os americanos, sim, não-muçulmanos, mas isso é permitido pelo Corão, desde que seja no interesse da comunidade islâmica. Também o profeta Maomé fez acordos com não-muçulmanos. Por isso, não se pode lutar contra os americanos que estão no país vizinho autorizados pelo governo iraquiano(*). Isso são erros de forma que não apenas invalidam a Jihad destes homens, como até a transformam em pecado.
O professor entoa o verso correspondente do Corão, o que emociona os homens. Alguns balançam o tronco. Nenhum contradiz.
As aulas de religião são apenas uma parte deste inovador programa de reabilitação. Também há terapia artística, acompanhamento psicológico, desporto e programas para reintegração social.
O programa, criado pelo Ministério do Interior, tem cerca de um ano. É um projecto exemplar na luta contra o extremismo islâmico, e complementa a luta militar sem tréguas contra terroristas. Não foi consequência dos ataques do 11 de Setembro, nos quais participaram maioritariamente sauditas, mas dos ataques da al-Qaeda a urbanizações na própria Arábia Saudita, em 2003. Ao ataque bombista de 2004 ao Ministério do Interior seguiu-se uma onda de prisões de pregadores radicais. Os estabelecimentos prisionais encheram-se, e a reeducação religiosa começou aí - até no seguimento da tradição de deixar as famílias enviarem eclesiásticos aos presos, para estes receberem conforto espiritual.
"Combater ideias com ideias", diz um responsável do Ministério. Conviria completar: combater ideias religiosas com ideias religiosas. O governo vê estes combatentes convertidos como "mensageiros da paz". "Um ex-jihadista pode, em cinco minutos, convencer jovens simpatizantes de que a luta no Iraque não é correcta. Nós damos-lhes os argumentos."
Este responsável afirma que na Arábia Saudita agora se fala mais abertamente sobre estes problemas. Também devido à mera necessidade. Os simpatizantes islâmicos, capturados devido a passagem ilegal da fronteira ou planos de participar na Jihad, não devem ser misturados na prisão com os ideólogos fanáticos e os combatentes aguerridos. Por isso, foram criados no país cinco novos centros, com capacidade para até 250 pessoas cada um. Talvez isto se deva também ao facto de os EUA afirmarem serem sauditas 40 a 50% dos combatentes islâmicos que entraram no Iraque entre o verão de 2006 e 2007.
O mais alto objectivo, embora não seja verbalizado, é fortalecer a lealdade ao Estado e à casa real saudita.
Os alunos devem estar gratos pela forma como são recebidos de braços abertos, apesar dos erros que cometeram - tal como crianças, seguras do amor dos seus pais independentemente das asneiras que façam. A abordagem paternalista é parte da "vacina". O conceito pode parecer simplista, mas o terapeuta artístico, que começou por ter dúvidas em participar no projecto, reconhece o seu êxito. "Eu pensava que estes homens são criminosos", recorda ele, "mas aqui dei-me conta de como muitos destes jovens são homens simples. São instrumentos de que outros se servem."
É difícil medir o êxito. Segundo dados oficiais, dos 120 homens que passaram pelo programa, não houve qualquer recaída. Dos 1000 islamistas que receberam reeducação religiosa na prisão, 20 foram de novo capturados.
À tarde, na segunda aula diária de religião, torna-se claro que ainda não foram respondidas todas as questões. Um ex-jihadista sentado na última fila, um homem que esteve cinco meses no Iraque, pergunta: "Se não podemos combater, qual é então o caminho correcto para ajudar os muçulmanos que são mortos pelos americanos?"
Quase se tem a impressão que o professor quer ganhar tempo, antes de responder: "Rezar, porque a compaixão é já uma forma de Jihad". A expressão cerrada do aluno na terceira fila não deixa entender se a resposta o convenceu.
Em contrapartida, parece que para Mufarrah funciona. A sua estadia deve aparecer-lhe como uma cura, com desporto, boa comida e pintura. Após a saída, recebem dinheiro; em cooperação com outros ministérios, os ex-jihadistas têm possibilidades acrescidas de receber um emprego do Estado. Chega a haver casamentos pagos pelo Estado, para estabilizar estes homens. Mufarrah al Faifi quer tornar-se professor de religião ou psicólogo. E só quer sair dali quando o psicólogo lhe escrever um atestado de que pensa de forma positiva.
(*) Nota da tradutora no seu papel de bloguista: esta argumentação é formidável, devem ter andado a aprender com o Rumsfeld. Hehehe.
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