I.
Em 2002 o Ballet Gulbenkian esteve em Weimar. Interessada e orgulhosa, levei os meus filhos a assistir ao espectáculo. Antes do início, o Matthias, de 5 anos, queixou-se que não conseguia ver nada porque a cadeira era demasiado baixa. Deixei-o vir para o meu colo. A senhora da frente virou-se para trás, furiosa porque o Matthias, ao passar por ela, batera levemente com o pé nas costas da sua cadeira, e perguntou desabridamente: "vão passar o serão todo a mexer-se assim e a incomodar os outros desta maneira?!"
Tivesse eu ido para o espectáculo a tresandar dos sovacos, tivesse eu adormecido e ressonado durante todo o tempo, tivesse eu empestado o ar de traques silenciosos, tivesse eu arrotado excessos de aguardente: ninguém ousaria interpelar-me, apesar de todos se sentirem incomodados.
Sozinha, ninguém me vence.
Com uma criança pela mão, passo imediatamente a pessoa de segunda classe.
II.
Em Weimar há um cruzamento com várias ilhas e semáforos sucessivos que demoram imenso tempo, para ruas em sentido único e quase sem movimento. Na prática, passamos vários minutos a olhar para o sinal vermelho e a rua deserta.
A Christina e eu íamos atrasadas para uma aula, eu vi a rua deserta e o sinal vermelho, expliquei-lhe que íamos fazer uma coisa proibida porque eu tinha condições para ver que não havia perigo bla bla bla mas que ela não podia fazer isso sozinha, e atravessámos os 4 m de rua até à ilha seguinte. O meu azar foi estar um condutor parado, à espera do seu sinal, que viu, abriu a janela e desatou a gritar comigo por causa do mau exemplo que dava à criança.
A Christina, muito assustada e chocada, perguntou: "Porque é que aquele desconhecido te está a chamar "vaca estúpida"?"
"É para teu bem, minha filha."
III.
Se me desse para relatar todos os conselhos que recebi, a respeito dos meus filhos, escrevia livros mais volumosos que os do Dr. Spock. Desde a enfermeira a esticar o indicador na direcção do bébé, que descansava do parto dormindo sobre o meu peito, e a ameaçar "vai-se arrepender disso!", passando pela vizinha que me viu chegar a casa com a recém-nascida e preveniu "não a deixe cair!", e mais não digo que estou a ver se acabo este post ainda hoje.
Todos sabem muito melhor que a mãe como deve tratar os filhos e como deve organizar a sua vida familiar.
Um bébé é o cavalo de Tróia para invadir famílias e consciências alheias.
IV.
O primeiro pediatra da Christina achava mal que eu trabalhasse e deixasse a criança na creche (que eu escolhera cuidadosamente: um grupo com 3 educadoras e 15 crianças entre os 0 e 6 anos). O lugar da mãe é em casa com os filhos, dizia ele. Quando lhe levei a Christina com uma tosse rouca, ele perguntou-me "ela tosse assim: crrrr, crrrr, crrrr?", eu respondi "sim, mais ou menos isso", e ele concluiu peremptório "é tosse convulsa, apanhou na creche, você vai ter de ficar com ela 3 meses em casa".
Mudei de pediatra, a tosse passou logo.
Em termos de certezas e de neutralidade da Ciência, estamos conversados.
V.
O hino das mães alemãs é assim:
Joga pedra na Geni,
joga bosta na Geni,
ela é feita pra apanhar
ela é boa de cuspir...
***
Ando há 14 anos convencida que em Portugal é tudo muito diferente. Que as mães portuguesas são respeitadas como pessoa, e que a sociedade alemã ainda tem muito que aprender com a portuguesa.
Mas, triste vida, na semana passada falei uma hora ao telefone com uma adepta do "não". Lá se me foram os preconceitos, lá se me foi o orgulho nacional.
Pelos vistos também acontece no meu país: a partir do momento em que se equaciona um bébé, as mulheres deixam de ser consideradas pessoas com sentimentos e angústias, consciência e responsabilidade. Tornam-se máquinas - que digo eu? parafusos! - da engrenagem social.
Há aqui uma terrível contradição: quem defende a dignidade da Vida Humana, e usa de tal falta de respeito ao falar sobre as mulheres (as mães, essas Genis), não percebeu o essencial dos valores que defende. Nem sequer percebeu que, ao ferir a dignidade da mãe, atinge a dignidade do filho que vai nascer dela.
Não está a defender uma Ética, mas uma Ideologia. Um Poder.
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