17 setembro 2020

debate público versus clandestinidade ideológica

Retomando o texto que traduzi no post anterior, sobre o modo como o actual fenómeno de crescente entrincheiramento ideológico constitui um risco grave para a Democracia, volto ao abaixo-assinado que inclui os nomes de Cavaco Silva, Passos Coelho, Manuel Braga da Cruz e D. Manuel Clemente, e que pede o direito de objecção de consciência para a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. 

Segundo Manuel Braga da Cruz, "não se trata de um grupo de reaccionários, mas de pessoas que defendem o pluralismo, contra o totalitarismo ideológico de matérias sensíveis e de cariz moral".
Será que entendi bem? Manuel Braga da Cruz acusa a escola pública portuguesa de ter uma agenda de totalitarismo ideológico? E está a referir um facto, ou a nomear uma espécie de monstro debaixo da cama dele? 

Para ficarmos no domínio do factual, gostaria que os subscritores daquele documento apresentassem exemplos concretos desse alegado totalitarismo. A que temas se referem dentro do currículo da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento? Onde traçam - concretamente - as linhas vermelhas dos conteúdos relativos a essas "matérias sensíveis"? Que casos têm para apresentar de professores/escolas que tenham ultrapassado essas linhas vermelhas? Trata-se de um problema alargado a toda a escola pública portuguesa, ou de incidentes ocasionais que se podem facilmente abordar e corrigir?

Admitindo o cenário de que esses subscritores estão em condições de trazer a público provas contundentes de que existe um totalitarismo ideológico na escola pública portuguesa, olhemos agora com mais atenção para o que fizeram.

Começo por lembrar o básico: para ser forte, a Democracia precisa de uma sociedade com sentido do comunidade e pertença, com regras e princípios aceites por todos. Este é o cenário dentro do qual se desenham as diferenças ideológicas. Numa sociedade democrática pluralista, o diálogo e o debate público são fundamentais para criar o tal consenso social alargado de que se fala no artigo que traduzi. Não significa isto que todos são obrigados a pensar o mesmo, mas que as diferenças se movem dentro de um conjunto de princípios válidos para todos. E, num tecido social que se está a rasgar em sectarismos vários, a escola pública tem um papel cada vez mais fundamental na formação de cidadãos conscientes do quadro de princípios dentro do qual exercerão as suas liberdades de sujeitos democráticos. 

Sendo assim, e tendo como objectivo último o reforço do sistema democrático português, perante o caso de uma escola pública que esteja a promover princípios "de totalitarismo ideológico", o que se exige a um antigo presidente da República, a um antigo primeiro-ministro, a um importante representante da Igreja Católica portuguesa e a um professor universitário de grande renome (entre muitos outros) é que usem o enorme peso da sua voz para promover o debate alargado, de modo a definir as linhas vermelhas dentro das quais se situa um consenso social básico sobre cada um daqueles temas.
Numa Democracia saudável não há outra hipótese senão esta: debater abertamente.

Mas não foi isso que fizeram os subscritores daquele abaixo-assinado. Em vez de lutarem para darem à escola pública os contornos de um consenso social básico aceitável para todos, preferiram usar o seu poder para criar espaços de clandestinidade ideológica, afirmando que certos assuntos são exclusivamente da esfera familiar. Pergunta-se: quais temas? E, concretamente: porquê? 

Mais: porque é que as pessoas que subscreveram aquela sugestão escolheram propor uma solução que, bem vistas as coisas, vai perigosamente na mesma direcção dos ataques que actualmente são desferidos contra as Democracias, em vez de decidirem contribuir para melhorar a Democracia portuguesa? O que as impede de dar início a um debate público para falar abertamente dos princípios básicos que devem ser transmitidos pela disciplina Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento?

É que, sinceramente, esta fuga ao debate sobre temas sensíveis, combinada com a proposta de os manter fora do espaço público, faz-me supor duas possibilidades igualmente más: ou querem proteger certas convicções pessoais que sabem estar para lá do defensável em público, ou sentem que o espaço de debate público português está dominado por um totalitarismo que impede um debate ideológico ao centro. 

Neste último caso, pergunto: quais são, concretamente, as ideias que não têm conseguido trazer ao espaço público, e de que modo foram impedidos de o fazer?
Era muito importante que respondessem a estas questões, para nos permitirem um confronto sério com o que possa estar a correr muito mal no debate democrático português. 


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