17 setembro 2020

consenso social

Recentemente li no Spiegel um texto que desmonta os ataques actuais à base das sociedades democráticas, e que nos convida a mudar a perspectiva: deixemos os braços de ferro fratricidas (como o recente episódio do ataque à disciplina de Cidadania) e tenhamos todos consciência da obrigação de construir plataformas de entendimento dentro dos limites democráticos. Por me parecer um bom contributo para o debate actual, aqui deixo a (rapidíssima) tradução:
A desintegração da democracia O triunfo do chapéu de alumínio Uma coluna de Henrik Müller Na base das democracias estão a razão e o compromisso. Mas em muitos países ocidentais o consenso social básico está a desmoronar-se, a capacidade de se chegar a acordo está a diminuir. Uma tentativa de explicação do fenómeno.

06.09.2020, 19:17

O que se passa actualmente nos EUA mostra até onde a desintegração da esfera pública pode levar. E a situação pode piorar ainda mais: após as eleições presidenciais de 3 de Novembro, existe o risco de uma derrapagem nacional para a violência popular, e de uma crise constitucional que poderia pôr em perigo a existência do sistema estatal norte-americano. Exagerado?

Os que avançam estes receios não são lunáticos, mas sóbrios analistas da situação. A revista "Economist" prevê "eleições muito feias" e adverte: "um resultado controverso pode ser perigoso". Um comentador do New York Times delineou um cenário no qual Donald Trump não admite a derrota nas urnas - e simplesmente permanece no cargo. Se se chegar a esse ponto, será uma questão de organizar uma "resistência civil permanente", "como em Hong Kong ou na Bielorrússia".

Eis alguns dos pré-requisitos da Democracia: que aqueles que sofrem uma derrota eleitoral reconheçam o resultado. Que a maioria respeite os direitos e interesses da minoria derrotada. Que exista um consenso social fundamental com base no qual sejam possíveis compromissos amplamente aceites. Que as instituições estatais estejam vinculadas à Lei e à Constituição, para que os cidadãos possam confiar nelas.

Tudo isto começou a esboroar-se. Não só nos EUA - mas nesse país está a acontecer de forma particularmente visível. A sociedade americana polarizou-se a tal ponto que estas condições básicas já não podem ser consideradas como um dado adquirido. Talvez a situação possa ser estabilizada se houver uma vitória clara de um sobre o outro candidato. Mas a proximidade de resultados que as sondagens prevêem faz-nos temer que o lado perdedor decida montar barricadas.

As sondagens francesas também apontam para um perigo semelhante: Marine Le Pen encontra-se a poucos pontos percentuais de distância de Emmanuel Macron. É certo que as próximas eleições só terão lugar daqui a dois anos. Mas a proximidade de resultados nas eleições de 2017 e, posteriormente, os protestos furiosos dos Gilets Jaunes mostraram a fragilidade do consenso social básico.

Na Alemanha a situação é mais estável. As atitudes populistas parecem estar a recuar, tal como concluiu um estudo recente da Fundação Bertelsmann. Enquanto a AfD se enreda em lutas de poder internas, as suas pontuações nas sondagens estão a cair. O facto de, até agora, a Alemanha ter atravessado a crise da covid-19 com um desempenho comparativamente melhor conquistou algum respeito para a coligação de frieza tecnocrática de Merkel e Scholz.

Mas as narrativas de conspiração também se estão a espalhar neste país. Ainda não se extinguiu o eco da repulsa provocada pelas demonstrações de Berlim do fim-de-semana passado, que uniu adversários do sistema provenientes de lugares ideológicos muito diferentes. Depois do primeiro choque da pandemia, incluindo shut down e máscara, as medidas anti-corona parecem estar a tornar-se o ponto de cristalização de uma oposição ecléctica extraparlamentar, que as tenta converter em trunfo.

Mas que se passa aqui, afinal?

É óbvio que está em curso um processo no qual o consenso social básico corre o risco de se perder. A mudança no panorama mediático facilita a desintegração da esfera pública. As sociedades estão a dividir-se em câmaras de ressonância cada vez mais pequenas, cada uma com as suas próprias narrativas sobre o estado do mundo. Estas narrativas não precisam necessariamente de uma base factual sólida para parecerem credíveis aos seus respectivos seguidores. A validação mútua no interior do grupo substitui o conhecimento e os testes lógicos de plausibilidade.

Isto é extremamente problemático: sem uma base factual comum, dificilmente se consegue distinguir entre problemas reais e imaginários. Em populações profundamente divididas perde-se o sentimento de pertença mútua, o que provoca o desmoronamento do consenso básico democrático. Os opositores políticos transformam-se em inimigos; nações que - como os EUA - outrora se mantinham unidas por histórias comuns fortes desintegram-se em tribos hostis, cada uma com a sua própria ideologia interna.

A ascensão das redes sociais é o factor técnico que acciona este desenvolvimento. Mas esse fenómeno só por si não explica a fragmentação da esfera pública. Em última análise, é uma questão de identidade. E isso significa: narrativas.

As pessoas experienciam-se a si próprias e ao mundo através de histórias. A percepção de si e do mundo são moldadas por narrativas. Somos contadores e ouvintes de histórias. É por isso que as narrativas são omnipresentes: condensam a realidade, reduzem a complexidade, definem relações de causa e efeito, descrevem a relação dos actores uns com os outros - e as nossas próprias relações com eles. Em suma, as narrativas clarificam as contradições do mundo e da existência, e criam identidade. Isto torna-as atractivas, e por vezes até perigosas.

Os meios de comunicação desempenham um papel central na formação da identidade. Produzem e divulgam as narrativas que guiam a autopercepção da sociedade e dos seus indivíduos. No seu ensaio "The Strong Reason to Be Together", o filósofo Peter Sloterdijk viu a nação moderna como um "colectivo de pertença mútua", pertença essa mantida pelos temas definidos pelos meios de comunicação social, especialmente a televisão. Mas este texto data de 1998: há muitos anos.

Nesse tempo, eram sobretudo os meios de comunicação social que reflectiam a imagem da sociedade de massas. Actualmente, as redes sociais criam novas realidades mediáticas de menor escala, nas quais grupos de pessoas com os mesmos interesses se encontram para partilhar histórias - e para se confirmarem nas respectivas crenças. Mas: quando a esfera pública se desintegra a tal ponto que divide a sociedade em vez de a abarcar - separando-a em tribos, pequenos grupos, comunidades virtuais de agitação que se radicalizam em relação ao exterior, mesmo à revelia de bons argumentos - o que é que nos resta?

Para poder funcionar, a Democracia precisa da disponibilidade para o consenso e o compromisso. Nos novos universos da comunicação, porém, aquilo que nos divide está a ganhar primazia. As diferenças são enfatizadas, os fossos alargam-se. Vemos todos os dias muitos exemplos desse fenómeno.

As narrativas estão sempre em evolução. E continuamente surgem novas versões. As pessoas lutam para interpretar um mundo em mudança e confusamente complexo, e para se integrarem nele juntando-lhe um sentido. Sentimos como crise as fases em que uma narrativa estabelecida perde o seu poder de interpretação. Quando acontecimentos dramáticos da vida - desemprego, perda de familiares, doença - põem em causa a nossa história pessoal até então vigente, somos abalados no âmago da nossa identidade individual. Por sua vez, a identidade colectiva é ameaçada quando as viragens históricas dos acontecimentos perturbam a história nacional de um "nós".

Actualmente, muitas sociedades parecem estar neste ponto. As grandes ideologias e religiões perderam a sua força agregadora. Já não é fácil nomear os elementos que constituem cada nação. Para cada indivíduo, isto significa que está a tornar-se mais difícil inscrever a sua própria história num contexto social comum. Mas à medida que as histórias de "nós" se tornam mais ambíguas, as histórias pessoais tornam-se confusas. Tanto maior é a necessidade de preencher as lacunas que surgem. O que está em causa é a confirmação de si próprio e a atenção por parte dos outros. 

Esta é a porta de entrada para mitos conspiratórios e sectarismos de todo o tipo: criam ofertas de identidade através da formação de comunidades de pessoas que supostamente detêm um conhecimento. O pérfido é que, quanto mais absurdas e radicais estas narrativas são - e quanto mais repulsivas parecem, portanto, para os que estão fora delas -, maior é o seu potencial de criação de comunidade. No final, o chapéu de alumínio triunfa sobre a razão.

Trump tira partido destes fenómenos. Não se conhece nele um alicerce de convicções. Mas demoniza os opositores políticos, agita o ressentimento racista e semeia a desconfiança contra o sistema (ao qual ele próprio preside). Por exemplo: há meses que afirma que haverá fraude eleitoral em massa através do voto por correspondência. Uma vez que, devido à covid, a proporção de votos por correspondência será elevada - alguns estados só permitirão o voto por correspondência - ele está a lançar assim as bases para o cenário de conflito descrito no início.

Embora não haja provas de fraude postal em massa, metade dos eleitores registados nos EUA estão agora convencidos da sua existência; entre os republicanos, o número chega a 80%, segundo um inquérito. 74% dos inquiridos disseram temer "a fraude eleitoral organizada por actores políticos para influenciar os resultados eleitorais". 

Se repetidas um número suficiente de vezes, até as narrativas comprovadamente falsas se tornam certezas. É a vitória da percepção sobre a realidade mensurável - e possivelmente uma receita para o caos.

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