16 julho 2020

Locronan (2), ou: um passeio de vários séculos






O burgo de Locronan nasceu a partir de um núcleo de beneditinos do séc. XI, e tornou-se um importante centro de peregrinação. No séc. XV a cidade começa a enriquecer também com a produção de lonas para velas de navios, que ao longo dos séculos seguintes viriam a ganhar enorme fama e a ser exportadas para vários países. Diz-se que eram de Locronan as velas que levaram Cristóvão Colombo ao outro lado do Atlântico. A abastança daquela época está bem reflectida na riqueza das suas casas de granito e das suas igrejas. Mas, a partir de fins do séc. XVII, com a concorrência de outras regiões e o início da produção industrial, o sistema económico de Locronan entrou em declínio. Com a pobreza vem o esquecimento. A cidade adormece para um sono de cem anos, do qual só desperta no séc. XX, com um beijo do príncipe Turismo. Hoje em dia vive sobretudo das enormes massas de turistas interessados em saborear a perfeição daquele antigo cenário urbano. Volta e meia também é usada pelo cinema ("Chouans!" de Philippe de Broca (1987), "Tess" de Roman Polanski (1979) e "Un long dimanche de fiançailles" de Jean-Pierre Jeunet (2004), entre outros).   

À entrada de Locronan há estacionamento para quase mil carros, mas quando chegámos estava vazio. A cidadezinha de oitocentos habitantes respirava suavemente ao sol desta Primavera tão atípica para a Bretanha. Descemos pela esquerda da rua principal para ir visitar a igreja de Nossa Senhora da Boa Nova. Estava aberta, e vazia de gente. 


Junto à igreja há uma bela fonte, dedicada a Santo Eutrópio, padroeiro dos hospitais, com poderes para curar todas as doenças. Todas! Um santo tão poderoso só pode ser sinal da importância que esta fonte teria no tempo dos druidas. E não a perdeu: nos anos da Grande Troménie, era costume dos habitantes de Locronan mergulharem na fonte as relíquias do santo, para distribuir depois por todos essa água tornada capaz de curar qualquer maleita.  
(Volta, Kebenn, porque no fundo nunca chegaste a sair desta região.) 

A igreja de Nossa Senhora da Boa Nova começou a ser feita no século XV, e é composta de duas partes: um para os crentes, junto à porta principal, e outra para os frades, do lado do altar. Junto ao arco que separa as duas zonas há uma cena da descida da cruz esculpida em granito, e que pela sua dimensão exagerada para o espaço me faz suspeitar que terá sido criada para um Calvário exterior, e em algum momento deixada ali. 


Quem não está ali por acaso é a imagem de Nossa Senhora da Boa Nova, do século XVI, a abrir a camisa para aleitar o filho. De um lado mãe de filho entregues à vida simples dos humanos, do outro lado o mistério teológico da trindade: pai, filho e espírito santo. 




Em 1985 a igreja foi enriquecida com vitrais de Alfred Manessier. Este que mostro, sobre o altar principal, pretende representar a Virgem a abrir o seu manto para acolher os fiéis.   


Subimos a rua Moal - que era a antiga rua das tecelagens de onde saíram as velas dos navios de muitos descobrimentos e de muitos corsários europeus - e cruzámo-nos com dois casais de turistas que nunca mais me desimpediam a paisagem para tirar a fotografia sem eles lá dentro.

(Impressionante como nos habituamos depressa ao luxo - noutra altura qualquer, aquela rua estaria apinhada de gente e eu teria de me contentar com fotografias dos pormenores: o telhado de colmo contra o granito da empena, a chaminé, a placa por cima da porta...)

Na rua Moal vê-se bem o que a História deixou pelo caminho: vários portais ricos de casas, que agora pouco mais são do que ruínas. Seriam as antigas tecelagens de onde saíram as velas que abriram os mares dos séculos XV e XVI.







Ao cimo da rua Moal desembocámos num cruzamento onde havia várias lojas. Numa delas tivemos uma bela conversa com o dono, que merece um post só para si.  

Entrámos numa marroquinaria cujo dono - bom vendedor! - quase me convenceu a comprar palmilhas de pele para evitar fungos nos pés (os taninos, louvava ele), e uma braçadeira larga de couro lindíssima, boa para evitar tendinites. Não comprei, mas talvez volte lá e dê uma segunda oportunidade à tentação. 

Continuámos o passeio: subimos parte da colina, e descemos pelo lado oposto da cidade, saboreando cada momento da tranquilidade do lugar. 


À entrada da aldeia encontrámos um homem que nos perguntou se queríamos ovos biológicos a um euro cada, e apontou para as suas galinhas: dois pobres bichos aninhados num canto  da rua. "Não teme que os carros as atropelem?", perguntei. "Desde há quase três meses que não há carros", respondeu. 

Descemos para a igreja principal. As igrejas, melhor dizendo: quando a maior estava terminada, no início do século XV, fizeram uma nova, a capela do Pénity, só para o túmulo de São Ronan. Esta capela é bem mais delicada que a igreja maior e, ao contrário da primeira, conseguiu conservar a sua flecha.
Um dia hei-de investigar o que aconteceu a tantas das flechas das igrejas bretãs. 





As duas igrejas são um autêntico museu de arte sacra dos últimos 600 anos. Este conjunto da "descida da cruz", por exemplo, em pedra policroma, semelhante ao que já víramos na igreja de Nossa Senhora da Boa Nova. A expressividade daqueles rostos lembra as cenas da Paixão de Lucas Cranach, o velho: contemporâneo deste escultor. 





Esta simpática Nossa Senhora, não sei de que século: calma, orgulhosa e autoconfiante a apresentar o seu filho ao mundo:


Um Ecce Homo do século XV; e uma Pietà não sei de que século, com um Jesus cujo penteado me intrigava - mas foi só até conhecer o do Manso Neto. 



O túmulo de Saint Ronan, escultura em pedra do século XVI, mostra o santo, que mesmo depois de morto continua a dominar um dragão, espetando-lhe o báculo na boca. Na Idade Média, o dragão era um símbolo do Mal, e esta insistência em dominar o dragão será com certeza uma variação do tema "Kebenn".   




Um detalhe do altar do Rosário, lindíssimo, do atelier de Maurice Leroux, Landerneau (1668):


Sobre o santo que se segue não encontrei nenhuma informação, mas com este ar de galã deve ter contribuído bastante para fortalecer o fervor de algumas crentes:


Um dos estandartes da procissão "Troménie" (e eu a perguntar-me como é que levam estas preciosidades para dar uma voltinha de 12 quilómetros ao vento e à chuva da Bretanha):






Mais alguns detalhes disto e daquilo:




Para terminar, um bocadinho de efeitos psicadélicos da Idade Média.
Que não se pense que os nossos avós levavam uma vida sensaborona!




O Joachim parou num café na praça ao lado da igreja. Estavam a servir à porta, segundo as regras da primeira fase do desconfinamento. 
- Quanto custa um café?
- 15 euros. 
- Ah, bom. Espero que valha a pena! Dois, por favor. 
Riram-se todos. 

Sem clientes, o dono do café tinha todo o tempo do mundo para estar connosco. Sugeriu-nos que fôssemos espreitar por cima de um muro ali perto - fomos, e descobrimos uma estátua em granito do Saint Ronan. Pareceu-me banal, mas ele tinha tanto gosto nela que às tantas será uma peça preciosíssima e secreta da terra.

Depois disse-nos que nos ia mostrar algo realmente especial. "Sabem como é, em qualquer igreja que se preze tem de haver elementos pagãos. Nós temos aqui um que é um luxo." 
Seguimos pelo cemitério, contornámos a igreja, e do lado de lá, num dos cantos da torre que sustentaria a flecha, deparámo-nos com isto: 



O Joachim voltou para a esplanada do café, onde entretanto se tinham juntado alguns moradores. Eu dei uma volta pelo cemitério, com as suas cruzes antigas e um belo calvário em granito, e fui ter de novo com o lojista conversador. 

- Já que sabe tanto sobre a História da Bretanha, será que me pode explicar  as duas sereias à entrada da igreja de Plomodiern?
- Essas não conheço, mas provavelmente é mais do mesmo: qualquer igreja bretã que se preze tem de ter algum elemento não cristão. 
- E o que sabe dos quartos alugados pelos pintores em Pont-Aven, onde ainda hoje se pode pernoitar?
- Disso não sei nada. O melhor é perguntar lá. Mas veja lá como pergunta, porque a resposta mais provável é dizerem-lhe "sim, sim! É na casa da minha avó. Venha comigo!"

(Mais tarde, descobri que não era em Pont-Aven. É em Belle-Île: é possível ficar a dormir na casa onde o Monet viveu quando andou a pintar na ilha.)

 




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