14 novembro 2017

conseguir não ver o que se nos mete pelos olhos adentro


1. A propósito da notícia do DN sobre a onda de denúncias de abuso sexual em Hollywood, um leitor escreveu: "Elas prostituíram-se para subir na carreira e ganhar fortunas e agora que têm a carreira feita é que têm a pouco , - ou nenhuma... -, vergonha de se vir queixar do que elas próprias pretendiam?"

Quem nunca ouviu a alusão sobre determinada mulher estar a subir na carreira em posição horizontal?
É uma acusação corrente. Quem assim fala, aceita e afirma implicitamente as regras do jogo numa sociedade dominada por homens: às mulheres não basta competência e talento - se querem ir longe, têm de aceitar fazer o jogo dos predadores sexuais que têm poder.
Quem ouve, e nada diz, ajuda a consolidar a ideia de que são essas as regras normais do jogo.
Muito haveria para dizer sobre uma sociedade que, por um lado, aceita como normal que as mulheres "façam carreira em posição horizontal" e que sem esse tipo de "concessões" lhes seja muito difícil fazer carreira, e ao mesmo tempo as acusa - como este comentador - de fazer carreira segundo as regras consideradas normais. Mas isso seria tema para um livro, muito mais que um pequeno post.


2. Os abusos de Weinstein eram de tal modo do conhecimento público que até foram objecto de piada numa cerimónia dos Óscares. E as gargalhadas do público não deixam margem para dúvidas: o pessoal sabia que para fazer carreira em Hollywood era preciso fazer "concessões" a Weinstein.




3. Um dos momentos mais sérios do filme "A Rainha de Espanha" (2017), de Trueba, é a relação de poder entre um dos actores mais importantes do elenco e um actor que sabe que a sua carreira acaba no momento em que oferecer resistência. Mesmo que fosse só por esses poucos minutos, já valia a pena ver o filme.
Porque é que meteram essa cena no filme? Narrativa cinematográfica, ou denúncia urgente?




E porque é que nós, que rimos nos Óscares e ficámos chocados e pensativos neste filme, não fomos capazes de dar o passo seguinte, o de falar abertamente sobre isto que vemos mas não queremos ver, isto que se alimenta do nosso silêncio e das nossas gargalhadas? E porque é que há tantos a chamar ao fenómeno #metoo um caso de histeria, exagero de bagatelas, auto vitimização?

Esta nossa cegueira é um caso sério.


2 comentários:

Alter Ego disse...

Este tópico é daqueles que dá pano para mangas. É verdadeiramente difícil de explicar a sensação de uma pessoa adulta (já para não falar de adolescentes) quando sujeita a situações de assédio, ou situações sexualmente explicitas sem contacto mas contra vontade, ou pior, com contacto. É inacreditável que exista tanta gente a cometer abusos (por vezes sem se aperceberem do impacto que tem nos outros, outras vezes aliciados por esse impacto). Um abuso não é somente uma violação física mas também psicológica. Nós vimos e somos mais permissivos em relação a esse tipo de abuso psicológico, não físico, do que deveríamos alguma vez ser, pois o impacto na vida das pessoas é muito significativo.
O que me pergunto sempre, é, quem são essas pessoas que pensam que podem desrespeitar a vontade das outras ou as moldar à sua vontade? E todos os que acham que há coisas piores, porque é que não se conseguem por nos sapatinhos de quem nem sabe o que fazer perante situações de abuso de poder, e não tem como encaixar isso na mente sem culpas? Não é difícil perceber o quão inaceitável é esse comportamento, por principio, se fosse algo bom, era feito às claras...
Li http://borboletasnabarriga.blogspot.pt/2017/11/metoo.html e achei uma boa leitura, aconselho.

Helena Araújo disse...

Boas perguntas.
Mas atenção: muito disto é feito às claras. Nós é que estamos tão habituado/as que nem reparamos. Ou só reparamos depois.