18 janeiro 2016

"faça de conta que não ouve"




(foto de uma notícia sobre acusações de xenofobia no SZ e na revista Focus, devido a estas imagens)


A informação de que o piropo (melhor dizendo: a importunação com propostas de teor sexual) já pode dar pena de prisão provocou uma onda de protestos, que iam desde "até parece que em Portugal não há problemas mais urgentes e importantes para resolver" até "não vamos começar a legislar sobre tudo e mais um par de botas! isso é totalitarismo!", passando por "como é que vão conseguir fazer prova disso em tribunal?" - sendo o debate acompanhado pelo baixo contínuo da atitude expressa pela frase lapidar: "mulher honesta não tem ouvidos".

Portanto: se um homem disser a outro, na rua, "seu gatuno! se te apanho a jeito, nem a alma se te aproveita!", o interpelado pode ir fazer queixa à polícia, pôr um processo por difamação, e eventualmente até pedir protecção policial. Mas se um homem disser a uma mulher, na rua, "sua boazona! se te apanho a jeito, dou-te três sem tirar!", é disparatado ir-se queixar à polícia. Não dá para provar seja o que for, os tribunais têm mais que fazer que perder tempo com ninharias, e toda a gente sabe que uma mulher honesta não tem ouvidos, aliás: ninguém a mandou ir por aquela rua, e muito menos vestida daquela maneira, quando sabia muito bem que tipo de homens costuma andar por ali.

No debate sobre a criminalização do piropo surge repetidamente a afirmação de que não há ligação nenhuma entre o "piropo" e a violência sexual física, e que o "piropo", mesmo se ordinário, é inócuo. Deixando de lado o facto de que não é isso que muitas mulheres relatam (muitas vezes o "piropo" vem acompanhado por um apalpão), gostava que me explicassem então porque é que um dos atacantes de Colónia se deu ao trabalho de traduzir "piropos" para a língua das vítimas, e gostava que me ajudassem a interpretar esta gracinha publicada no facebook por alguém que se diz humorista:




A nossa cultura habituou-se a bagatelizar o assédio de rua, culpabilizou a vítima (se fosse honesta, não tinha ouvidos; se fosse prudente - na roupa que veste, nas ruas que frequenta, nas horas a que anda sozinha na rua - não tinha que ouvir), e deixou cada mulher isolada num limbo de silêncio. Pelo que as mulheres se habituaram, elas próprias, a não chatear. Aprendem desde o início da puberdade a fazer de conta que não ouviram, a atravessar para o outro passeio, a evitar certas ruas, a "manter um braço de distância". Automaticamente, e em silêncio.

Penso que este acordo tácito social para bagatelizar o problema do assédio teve um papel muito importante nos acontecimentos em Colónia. A polícia não se terá apercebido do que estava a acontecer, porque apalpões a mulheres em eventos deste género são, digamos, azares que acontecem, mas não são algo com que os agentes da autoridade tenham de se preocupar. Lá está: ninguém as mandou ir para o meio de desconhecidos, já se sabe que há sempre algum que se aproveita, agora escusam de se armar em histéricas e hipersensíveis, afinal foi só um apalpão, claro que é desagradável, mas convenhamos que ninguém lhes tirou um bocado. Como respondeu um polícia a duas jovens que lhe foram pedir ajuda nessa noite, nessa praça, depois de terem sido atacadas por um grupo de cinco homens que as apalpou como quis, se riu dos pedidos de ajuda delas, e a seguir lhes tentou roubar um telemóvel: "não podemos fazer nada - acautelem os vossos objectos de valor".

No dia seguinte, no relatório policial sobre os acontecimentos da passagem de ano, dizia-se que tinha corrido com relativa normalidade. Acredito que a polícia não estaria a esconder os factos - estava simplesmente a fazer o que a sociedade acha normal: ignorar o que acontece às mulheres. Porquê sobressaltar-se com uma dúzia de queixas de mulheres que alegadamente teriam sido alvo de homens que as trataram sem respeito?

As próprias mulheres demoraram alguns dias a entender o que lhes aconteceu, e a dar-se conta de que, desta vez (!), tinham o direito de se queixar. Só isso explica que as queixas tenham entrado a conta-gotas. Até ao dia 4 de Janeiro ainda só havia 15 queixas por violência sexual; duas semanas depois dos incidentes, o número de queixas por violência sexual já ia em 330 (num total de 650 queixas, e 739 vítimas).

Perguntarão: então as mulheres não perceberam logo no dia 31 de Dezembro que foram apalpadas?
Essa parte não tem dúvida. Mas foi preciso terem sentido, por parte da sociedade, uma enorme onda de empatia, para terem a certeza de que desta vez seriam olhadas como vítima, e não como culpada, ou como histérica.

De certo modo foi uma sorte os atacantes serem árabes ou do norte de África: ao estilizar-se na cabeça de todos a imagem de mãos pretas em corpos femininos brancos, o crime em si desenhou-se com clareza, sem se deixar turvar pelo reflexo de tolerar os nossos hábitos culturais e de proteger os nossos homens. Neste caso, a xenofobia jogou a favor da causa das mulheres, porque ao ser cometido pelo "outro", pelo bárbaro indesejado, deu ao crime concreto uma visibilidade imune a qualquer máscara ou desculpa.



Também os gritos que da rua se ergueram para expulsar esses criminosos jogam a favor das mulheres. Para serem expulsos, têm de ser acusados de um crime grave. Pelo que o assédio de rua passará a ser considerado crime grave, seja cometido por "um desses energúmenos" ou por um dos "nossos". Se temos motivo para ficar muito incomodados por um refugiado árabe/muçulmano ter consigo um papel onde escreveu a tradução para a nossa língua de frases como "mamas grandes" e "quero-te foder", temos de ficar igualmente incomodados quando essas frases brotam da boquinha de um compatriota nosso. Não há como penalizar duramente no caso de uns, e tolerar no caso dos outros.

A polícia aprendeu depressa. Na semana passada, prenderam dois paquistaneses que andavam a abraçar mulheres junto à Porta de Brandeburgo, em Berlim. Os media também aprenderam depressa: em vez de passar em silêncio, essa notícia vinha na primeira página do suplemento regional do meu diário berlinense. Se há algo de positivo nos acontecimentos de Colónia, na passagem de ano, é este novo olhar, atento e crítico, ao assédio verbal e físico na rua. A sociedade já não faz de conta que não vê.

Por seu turno, as feministas alemãs lançaram nova campanha. Chama-se #ausnahmslos, ("sem excepção" - aqui, em inglês) e está a ser muito bem recebida pela sociedade alemã.

Os tempos estão a mudar. Nunca mais se vai poder dizer a uma mulher "faça de conta que não ouve".


4 comentários:

Luís Lavoura disse...

As próprias mulheres demoraram alguns dias a entender o que lhes aconteceu. Só isso explica que as queixas tenham entrado a conta-gotas.

Há outra explicação possível, mazinha - boa parte das queixas é falsa. Muitas mulheres, lendo nos jornais que outras se queixaram, decidem também queixar-se de algo que de facto não ocorreu com elas. Podem fazê-lo, sabe-se lá, por desejo de protagonismo, por racismo, ou pelo desejo de receber uma eventual indemnização.

Não digo que esta explicação seja verdadeira para muitas mulheres. Mas pode sê-lo para algumas.

Helena Araújo disse...

Luís: ganhe juízo.
Este seu comentário revela imenso sobre si.

Unknown disse...

Gostei muito deste texto, Gui. Obrigada.

Este, de hoje, começa com uma referência às duas imagens e creio que vai ao encontro de muito do que tens escrito e traduzido: http://www.lrb.co.uk/blog/2016/01/21/tamara-micner/what-happened-in-cologne/

Beijinhos da Plem-plem

Helena Araújo disse...

Olá Plem-Plem,
:)
Obrigada também por esse texto. É uma boa síntese.
Beijinhos.