Por causa das gargalhadas que este texto me provocou, e da admiração que me causaram certos trocadilhos (se querem saber tudo: fiquei cheia de inveja daquele "pós-colonialismo"), e sobretudo porque é uma crítica muito bem feita ao modo como o debate no espaço público está a ficar irracional e inútil, traduzo (apressadamente, já se sabe, em registo muito livre e encurtando as partes que me obrigariam a pensar muito para traduzir bem).
Ora cá vamos nós.
Como discutir com a forquilha de estrume
Margarete Stokowski - 14.01.2016Spiegel Online
Encontramo-nos desde há duas semanas na época do pós-colonialismo. Esta nova era tem as suas próprias regras. Um guia.
Encontramo-nos desde há duas semanas numa nova época: a do pós-colonialismo. Uma era na qual a lógica já não conta, porque pura e simplesmente já ninguém a usa, e o bom senso não se consegue fazer ouvir no meio da barulheira. Mas o pós-colonialismo também tem as suas regras. Ei-las:
Regra primordial: não convém usar argumentos. Os argumentos discriminam as pessoas que não têm a capacidade de pensar. Portanto, nos debates há que evitar encadeamentos lógicos e justificações compreensíveis. Também não se deve dar ouvidos aos argumentos das outras pessoas. Afinal de contas, isto aqui não é uma universidade de elite. Não temos de reflectir. Pelo contrário: a reflexão encandeia. (É uma questão da Física).
Segunda regra: conhece o princípio da boa vontade na interpretação? Não? Não importa. Significa que, em vez de procurar o pior possível no que outra pessoa diz, se ouve numa atitude de boa vontade, a partir da qual se interpreta e critica. Mas isto são coisas de antigamente. Terá sido inventado por uns santos quaisquer na Idade Média, e depois académicos sem qualquer noção da realidade, nos anos cinquenta (!), copiaram a ideia. Em inglês chama-se "principle of charity". Hahaha, charity. Isso é coisa de famosos ricos, que constroem escolas para zebras no Saara, não é para gente como nós. A propósito: este é o ano do macaco no calendário chinês. Comportemo-nos em conformidade.
Terceira regra: se quer discutir com alguém, não se deixe confundir. Não importa se o seu oponente também quer o mesmo. Mantenha o seu rumo! Comece por reparar nas características exteriores: qual é o aspecto dessa pessoa? Pertence a uma minoria? Tente identificar potenciais fragilidades, partes do corpo pouco estéticas (veja também por trás) e boatos sobre a mãe dessa pessoa. Mas não perca muito tempo com isso. Não verifique a veracidade das insinuações. Qualquer informação serve, e a mesquinhez é um valor precioso. Comece por ofender a pessoa. Tente ir baixando o nível passo a passo, até tocar o chão. Uma vez aí, repouse um pouco. Depois, comece realmente a sério. Mas mantenha-se sempre lá em baixo! É o terreno mais seguro.
Quarta regra: por princípio, não acredite em nada do que lê nos jornais. Se está impresso, é mentira. Leia as notícias como se fossem ironia. Anedotas. As três excepções sagradas são a coluna do Harald Martenstein, os prospectos do Aldi e o Cicero. O resto, é imprensa-falsa-pára-a-valsa. Envie cartas do leitor à imprensa falsa - muitas! Escreva dez cartas por cada mágoa que sofreu na sua infância. Diariamente.
Quinta regra: conhece a Hannah Arendt? LOL, não é preciso. Era só um teste. Como se tivesse de acreditar em pessoas do século passado! Não acredite em intelectuais! Se tiver de acreditar em alguém, que seja em gente do You Tube ou da "Junge Alternative". Têm mais futuro. Em tempos houve um tipo que escreveu "como filosofar com o martelo". Isso não é cá para nós. Nós argumentamos com a forquilha do estrume.
[em "forquilha do estrume" há um link para esta notícia, sobre um motim de 250 neonazis em Leipzig, que rebentou paralelamente à manifestação em que o Pegida comemorava um ano de existência. Acolhida por um público que gritava "resistir! resistir!", uma oradora do Pegida afirmou: "Se a maioria da população ainda estivesse no seu perfeito juízo, pegava em forquilhas de estrume para correr com estas elites traiçoeiras ao povo, correr com elas dos parlamentos, dos tribunais e das igrejas."]
Intervalo para um exercício de respiração: inspire e expire, tomando o dobro do tempo para inspirar que para expirar. (Os idiotas do ioga fazem isto ao contrário, mas você não é um idiota do ioga.) Mantenha os músculos do maxilar e dos joelhos retesados. Permaneça assim.
Sexta regra: Não poder usar argumentos não significa que a língua não tenha importância. Use palavras fortes, isso torna-o poderoso. Censura! Incitamento ao ódio! Nazi! Se quer proteger as mulheres, cuide de ter uma aura de seriedade, dizendo muitas vezes cona-mole. No Twitter, escolha um nome como ParceiroRaivoso3000. Para sublinhar a sua autoridade, escreva em maiúsculas, com muitos pontos de exclamação e o emoji da bomba.
Sétima regra: O twitter é o máximo. Vá para lá! O melhor é fazer logo vários perfis: quantos mais, melhor. Além disso, pode enviar likes-coração a si próprio. Se por causa de tantos cliques não tiver tempo para arranjar uma foto de perfil, deixe ficar o ovo deles. De qualquer modo, essa é a melhor solução. Seja um ovo. Ovos são inatacáveis. Repare no Humpty Dumpty, em "Alice do outro lado do espelho". Um caso exemplar de ovo, sobretudo no que diz respeito à cultura do debate.
[em "cultura do debate" há um link para a wikipedia em alemão, "Humpty Dumpty na Filosofia", onde se lê:
"I don't know what you mean by 'glory,' " Alice said.
Humpty Dumpty smiled contemptuously. "Of course you don't—till I tell you. I meant 'there's a nice knock-down argument for you!' "
"But 'glory' doesn't mean 'a nice knock-down argument'," Alice objected.
"When I use a word," Humpty Dumpty said, in rather a scornful tone, "it means just what I choose it to mean—neither more nor less."
"The question is," said Alice, "whether you can make words mean so many different things."
"The question is," said Humpty Dumpty, "which is to be master—that's all."
Alice was too much puzzled to say anything, so after a minute Humpty Dumpty began again. "They've a temper, some of them—particularly verbs, they're the proudest—adjectives you can do anything with, but not verbs—however, I can manage the whole lot! Impenetrability! That's what I say!"
Chama-se "argumento Humtpy Dumpty" a alegações (1.) que, numa discussão, são apresentadas como válidas sem qualquer outro fundamento para além de um poder de facto, permitindo este prescindir de verdadeiros argumentos, ou (2.) nas quais são usadas palavras com um significado que se afasta de modo flagrante do seu uso habitual. ]
"Quando uso uma palavra", explica Humpty Dumpty à Alice, "ela significa exactamente aquilo que eu deixo que ela signifique, e nada mais." Para a Alice, aquilo é muito estranho, para Humpty Dumpty não é: "A questão é: quem tem o poder. E isso é tudo."
Tome o poder nas suas mãos. Se prefere o facebook ao twitter: não há problema. No facebook também vigoram as leis do pós-colonialismo. Já há mulheres na política a publicar as regras da etiqueta na net para esta nova era.
[esta última frase tem um link para o mural de facebook da Renate Künast, no marcador "etiqueta na net", no qual ela se dirige às pessoas que lhe enviam cartas de ódio. O texto, muito sarcástico, termina com um aviso sobre ela fazer queixa por qualquer mensagem agressiva, e que as coisas se podem tornar desagradáveis para o agressor. Dá um exemplo.]
Oitava regra: Quando disser alguma coisa, sublinhe que é essa a verdade. Isso é importante. Quem não faz isso, está a mentir. Veja-se a imprensa falsa. Habitue-se a frases como "agora vou quebrar um tabu" ou "desculpem a pergunta ingénua", e sobretudo "isto que vou dizer não é politicamente correcto, mas...". Termine sempre com "alguém tinha de dizer isto" ou então com "pobre Alemanha". Antes de adormecer, diga: "boa noite, Alemanha". Ensine isso aos seus filhos.
Nona regra: Contradiga-se. Isso é da ordem da dialéctica. O seu opositor é apanhado de surpresa, o que lhe permite a si ganhar tempo. Use o tempo que ganhou para ler o "Focus online". Tente ler tudo o que há no "Focus online". As pessoas com mais experiência conseguem fazer simultaneamente o exercício respiratório descrito acima. (Mas não aceite ordens de cima. Os de cima são criminosos.)
Décima regra: Não recorra nunca à ironia. (Atenção: isso contradiz a quarta regra, mas não faz mal: é bom haver contradições! V. a nona regra.) Já ninguém entende ironia. A ironia mata. Vai haver sempre um palerma qualquer que a vai levar a sério - e nesse caso, boa noite, Alemanha.
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