18 fevereiro 2012

Jonas Kaufmann

(foto do Paulo)

Ontem, na sala enorme da Filarmonia, Jonas Kaufmann e o pianista Helmut Deutsch encantaram. Verdade seja dita, já sabíamos ao que íamos. Mas de facto não, não sabíamos. Jonas Kaufmann absolutamente em forma, uma combinação perfeita com o pianista, um trabalho muito sério mas atravessado por toques de leveza e humor dos dois músicos que faziam o público aplaudir com palmas e gargalhadas.
Começou com Liszt, o que não teria sido a minha primeira escolha, mas nunca me perguntam nada e depois dá nisto (no fim diziam-me, com alguma maldade, que foi só para aquecer a voz), seguiu para Mahler. No Ich bin der Welt abhanden gekommen o coro da tuberculose galopante resolveu acompanhá-lo, e destruiu toda a beleza do momento. Estas pessoas não se tocam? Se estão prestes a largar os pulmões boca fora, porque não vão logo para o hospital? Porque não ficam no quentinho do lar a beber um chá com mel? Se eu fosse cantora lírica (hihihi) garanto que parava a meio da peça e pedia às pessoas que saíssem da sala. E adiante. Depois de Liszt e Mahler, Duparc e Strauss: excelente. 

Se o concerto correspondeu às nossas altíssimas expectativas, os encore superaram-nas largamente. Quarenta e cinco minutos, uma canção e outra e outra, quase todas Strauss. A Freundliche Vision, o terceiro encore, deixou-me muda e paralisada, tal como a vizinha do lado: olhávamo-nos em silêncio, fascinadas por tanta beleza. A minha companheira de sortilégio é cantora profissional, agora já na reforma, e entre palmas comentava os pormenores técnicos - que perfeição, que bela resolução das passagens mais difíceis, que não conhece nenhum tenor que faça com tanta leveza aqueles crescendos com a voz a ressoar dentro da testa - e eu ouvia-a, deliciada. Depois do terceiro encore, já me preparava para abandonar a sala satisfeitíssima da vida, aparecem de novo o cantor com o pianista, que trazia folhas na mão. O público delirou. Mais palmas, ele canta Zueignung, mais palmas, mais um regresso ao palco, então pronto, vamos embora. E eis que o pianista regressa, e tem de novo folhas. Quinto encore?! Gritámos como adolescentes em frente ao Justin Bieber. Dein ist mein ganzes Herz, o público ri-se. Mais dois encores, sexto, sétimo, e os aplausos não paravam, o público aglomerava-se em pé à frente do palco. Jonas Kaufmann volta à sala, pede-nos para fazer silêncio, e diz: "Vocês apanharam-me desprevenido. Não contava com isto, e não sei que mais cantar. Garanto que já não tenho mesmo mais nada na manga. Vamos fazer um acordo: eu vou cantar algo que ainda não conheço bem, e por isso vou ficar junto ao pianista a ler a pauta, e vocês, em troca, param de bater palmas e vão para casa."
Gargalhada geral.
Cantou o oitavo extra da noite, nós fizemos um aplauso intenso e breve, e saímos.

Depois de alguma hesitação, acabámos em frente ao camarim do artista. Meia dúzia de pessoas apenas, uma sorte. Quando ele saiu, pudemos felicitá-lo com calma, perguntar quando vai a Lisboa, e ele "já não vou há tanto tempo, e é uma cidade tão bonita", e nós a insistir que tem de ir, e a pedir autógrafos.

Parámos a beber um espumante no bar dos artistas. Um músico da orquestra passou por nós e lançou : "depois disto, amanhã, no fim da segunda de Mahler, o Simon Rattle vai ter de dar como encore a terceira!" e alguém retorquiu a rir "não, vai repetir a segunda, até nós percebermos tudo..."
Estávamos por ali em conversa feliz, quando apareceu outro amigo, que se sentou à nossa mesa a contar histórias do tempo Karajan.
- Conte como o conheceu, pediram.
- Uiiii, isso é um longa história. Deixe cá ver...  Os Osterfestspiele de Salzburg oferecem a pessoas que têm um bilhete especial um concerto suplementar, uma espécie de ensaio geral. Num desses concertos, a orquestra tocava Pini di Roma, de Respighi, uma peça onde às tantas aparece um rouxinol, tocado ou por uma flauta, ou mesmo com uma gravação. O Karajan explicou que o rouxinol tem de cantar para a fêmea que está no choco, para que ela não adormeça e não esmague os ovinhos sob o peso do seu corpo.
("Cantar para não deixar dormir o parceiro?", pensei eu. "Uma boa ressonadela também resolve o problema...")
- Eu achei aquela história estranha, continuou ele. De regresso a Berlim, escrevi ao Jardim Zoológico a perguntar se me confirmavam essa teoria. Alguns dias depois recebi uma carta de página e meia a explicar imensas coisas sobre a vida dos rouxinóis, e a informar que de facto essa história de cantar para manter a fêmea acordada não era correcta. Que havia eu de fazer? Reenviei esta carta ao Karajan: olha, aqui, este sou eu, estive lá, ouvi aquilo, pensei assim, fiz, responderam como aqui está escrito. Passadas algumas semanas, recebo uma carta, hohohohoho, uma carta com cabeçalho "Herbert von Karajan".
- Hohohoho, repetia ele, e de novo vivia a emoção que sentira naquele dia, ao abrir um envelope e ver uma folha de papel timbrado "Herbert von Karajan".
- Dizia-me ele que se divertira imenso com a minha carta, e agradecia a informação. Hohohoho. Eu tinha amigos na orquestra, contei-lhes a história, e alguns meses mais tarde, quando o maestro contou durante um ensaio o incidente do rouxinol, eles responderam que já conheciam a história, e o maestro disse "então quero conhecer esse senhor" - e convidou-me para me encontrar com ele depois de um concerto. Para me acalmarem, porque eu vinha com o coração aos saltos, os meus amigos disseram-me que seria coisa de dez minutos, e num instante passava. Quais quê! Quarenta minutos: o motorista à porta à espera, o pessoal com o casaco do maestro, os amigos... e ele ali, sentado comigo, a conversar a conversar. Até que finalmente disse "acho que agora estou a precisar de uma cama", e se foi embora.

Também nós nos fomos embora, que já era meia-noite. Não sem antes combinar ir ao ensaio geral da segunda de Mahler, que foi hoje de manhã. Mas isso já é história para outro post.
Ultimamente as coisas boas sucedem-se a uma velocidade de tal modo vertiginosa, que eu nem tenho tempo de me aperceber do que está a acontecer, quanto mais de contar...

2 comentários:

Gi disse...

Que maravilha, Helena, eu aqui a ler e a pensar, quem me dera ter lá estado, e que felizes eles se devem ter sentido, e que felicidade também a do músico que ninguém queria deixar ir embora, e que cidade fantástica onde estes encontros são coisas do dia-a-dia - ou que maneira que tens de os descrever que assim parecem!
E já a passar para o post a seguir, sabendo que voltarei a este para o saborear...

Helena Araújo disse...

Gi, isso é tudo verdade. E eu, por uma vez sem exemplo (hihihi), não exagerei nem um bocadinho.

A ver quando é que o Jonas Kaufmann volta cá. Constou-me que da próxima vez os bilhetes vão ser mais baratos. Se ele não vai a Portugal, seria uma boa razão para vir a Berlim...