01 abril 2010

uma crise generalizada, e não apenas da Igreja

O António Marujo escreveu um texto excelente sobre a Igreja e a pedofilia.
Está aqui, mas quero guardá-lo neste blogue, e por isso deixarei uma cópia no fim deste post.

Mais abaixo, acrescentarei três apontamentos à margem desta análise, porque se referem a questões que têm a ver com toda a nossa sociedade.

Para já, um pequeno complemento, sobre a diferença entre o direito canónico e o direito estatal, que li neste artigo (em alemão) escrito por Andreas Zielcke, no jornal Süddeutsche Zeitung de 25.03.2010. Sinteticamente, a Igreja Católica acordou demasiado tarde (tal como os outros, diga-se de passagem - e parece-me que ainda só estamos a ver a ponta do icebergue) para o horror da pedofilia e a responsabilidade civil das instituições (ou contextos familiares) nas quais ela ocorre.
Por sua vez, o direito canónico obedeceu à máxima de separar o que é de César e o que é da Igreja. No caso da pedofilia, centrou-se na pureza dos sacramentos, e esqueceu-se que também tinha obrigações perante César. O que é uma falha gravíssima, e que se espera comece a ser corrigida agora.

A pureza dos sacramentos: quem ler a entretanto célebre carta de Ratzinger de 2001, que tem dado belas parangonas para notícias sem qualquer substância, e na qual o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (atenção ao cargo, atenção aos objectivos da organização) pede máximo segredo sobre os casos - como ia dizendo, quem ler essa carta percebe que aquilo é todo um outro mundo, onde o que está em causa é a protecção da santidade dos sacramentos, e não a responsabilidade civil dos padres e dos bispos.

Para terem uma ideia:
The more grave delicts both in the celebration of the sacraments and against morals reserved to the Congregation for the Doctrine of the Faith are: -Delicts against the sanctity of the most august eucharistic sacrifice and the sacraments, namely: 1. Taking or retaining the consecrated species for a sacrilegious purpose or throwing them away.(4) 2. Attempting the liturgical action of the eucharistic sacrifice or simulating the same.(5) 3. Forbidden concelebration of the eucharistic sacrifice with ministers of ecclesial communities which do not have apostolic succession and do not recognize the sacramental dignity of priestly ordination.(6) 4. Consecrating for a sacrilegious purpose one matter without the other in the eucharistic celebration or even both outside a eucharistic celebration.(7) -Delicts against the sanctity of the sacrament of penance, namely: 1. Absolution of an accomplice in sin against the Sixth Commandment of the Decalogue.(8) 2. Solicitation in the act, on the occasion or under the pretext of confession, to sin against the Sixth Commandment of the Decalogue, if it is directed to sin with the confessor himself.(9) 3. Direct violation of the sacramental seal.(10) -A delict against morals, namely: the delict committed by a cleric against the Sixth Commandment of the Decalogue with a minor below the age of 18 years. Only these delicts, which are indicated above with their definition, are reserved to the apostolic tribunal of the Congregation for the Doctrine of the Faith.

Ou seja: não se trata do crime contra uma pessoa, mas contra um sacramento. Seja o padre que deitou fora o vinho que sobrou da Eucaristia, seja o que abusa do sacramento da confissão para perdoar a uma mulher o pecado de ter tido relações sexuais com ele próprio, seja o que abusou sexualmente de menores (porque, se bem percebi, essas "intimidades" pervertem o carácter sagrado do sacramento da confissão), etc.

E para mostrar com mais clareza como tudo isto se passa numa outra realidade, lembre-se que o último artigo do Código do Direito Canónico, no fim do capítulo sobre o processo de destituição ou transferência de párocos, afirma que o seu objectivo principal é a garantia da rectidão canónica e a salvação das almas na Igreja. O que explica melhor os termos em que a carta do Papa aos irlandeses é redigida, e que a alguns pareceram muito estranhos: perante um crime grave, o Papa - além de condenar, manifestar vergonha e afirmar que é preciso actuar - apela ao arrependimento e à oração. O que está certo, porque aquela gente move-se numa esfera que não é deste mundo. Ele não está a escrever como um advogado (nesse caso, falaria apenas em termos de Direito e tribunais), nem como psi-qualquer-coisa (sugeriria logo uma psicanálise aos padres e às vítimas), mas como Papa preocupado em salvar as almas de todas as suas ovelhas.

Chegados aqui, concordamos que foi um erro gravíssimo a Igreja preocupar-se com a santidade dos sacramentos e esquecer-se do sofrimento de crianças que lhe eram confiadas. Não há como manter-se instância moral máxima se persiste nesta atitude de absoluta irresponsabilidade perante o mundo real. Tenho a certeza que a Igreja vai aprender muito com esta crise - nem tem outra hipótese.

***

Mais três apontamentos:

1. Estes problema não afecta apenas os internatos das Igrejas:
- Também nos internatos de escolas de pedagogia extremamente inovadora (não confessionais, onde ninguém é obrigado ao celibato) tem havido a revelação de escândalos de pedofilia. As reacções dos anteriores responsáveis e de antigos alunos são muito estranhas: que ninguém era obrigado, que os alunos sabiam ao que iam e o que tinham a ganhar, que era um dar e receber....
- Também na RDA houve vários casos de crianças retiradas aos pais e postas em internatos para serem reeducadas, onde a pedagogia incluia a humilhação sexual e todos os abusos que se possam imaginar.

2. Há toda uma zona cinzenta que vamos ter de discutir.
Sinteticamente: um miúdo de 14 anos é apenas vítima? Ou é actor da sua própria história, e tem direito à auto-determinação sexual? Não é a Igreja que coloca esta questão, obviamente, mas alguns políticos de esquerda, desde a revolução de 68 até aos nossos dias.
Venha o debate!

3. É toda uma evolução, mesmo no direito civil. Às crianças estão a ser reconhecidos cada vez mais direitos. Os próximos escândalos serão a violência sobre crianças (já começaram a falar quase com o mesmo horror sobre a pedofilia e o uso de violência física contra miúdos dos internatos); seguir-se-á o direito à actividade física (ai de quem os ponha em frente à televisão ou ao computador em vez de ir fazer desporto com eles - é um problema gravíssimo de saúde pública, para o qual as sociedades estão agora a acordar); e por aí adiante. Há práticas "educacionais" nas famílias portuguesas que já hoje são consideradas crime noutros países europeus. Daqui a uns anos, acusarão as mães de não terem denunciado o marido por este bater nas crianças, como hoje acusam os bispos de não terem denunciado os padres.
Seria boa ideia estarmos muito atentos ao modo como falamos do papel dos bispos no escândalo da pedofilia, porque pode ser que se esteja a criar o modelo para o modo como daqui a uns anos falarão de nós (no nosso papel de pais ou de professores) por termos descurado as nossas responsabilidades no apoio às crianças que nos foram confiadas.


***

Análise

A maior crise da Igreja Católica dos últimos 100 anos

27.03.2010 - 21:03 Por António Marujo


A Igreja Católica atravessa a mais profunda crise do último século. Para encontrar algo de dimensão semelhante, devemos recuar até ao início do século XX, com o anti-modernismo do Papa Pio X. Ou antes, a 1870 e ao Concílio Vaticano I, com o dogma da infalibilidade papal, o cisma dos velho-católicos e o fim dos Estados Pontifícios. Há uma diferença: esta crise atinge um catolicismo universal, ao contrário do de há um século, quando ainda era uma realidade pouco mais que europeia.

Há várias questões à volta deste tema que, de repente, coloca um Papa académico perante um dos mais graves problemas pastorais da Igreja. Será ele capaz de afrontar o problema com a coragem necessária?

Ratzinger é um teólogo notável no diálogo cultural, mesmo com filósofos não-crentes como Jürgen Habermas ou Paolo Flores d’Arcais (como se pode perceber em Existe Deus?, editado na Pedra Angular). Eleito para um pontificado de transição, cuja marca seria afirmar a importância do facto cristão no diálogo multicultural contemporâneo, Bento XVI tem o desafio de “limpar a Igreja” da sua sujidade, como ele próprio afirmou na Via-Sacra de Sexta-Feira Santa de 2005, poucos dias antes da morte de João Paulo II.

1. Esta crise, como diz o étimo da palavra, pode ser uma oportunidade de mudança. A começar pela relação entre catolicismo e sexualidade – que o teólogo Hans Küng definiu como uma “relação crispada”. Não para dizer que o celibato é a causa da pedofilia. O celibato como opção voluntária pode ser dedicação extraordinária a uma comunidade. Como disciplina obrigatória (com excepções nas Igrejas Católicas orientais ligadas a Roma e, agora, com os anglicanos que decidiram aderir ao catolicismo), poderá ser revisto.

É certo que a esmagadora maioria de casos de abusos acontece com pais e familiares próximos das crianças. Como escrevia o Papa na carta aos católicos irlandeses, a pedofilia não é um problema que se restringe aquele país nem à Igreja Católica. Bem pelo contrário. Mas encarar a questão da sexualidade significa afrontar, desde logo, a formação nos seminários, tantas vezes castradora de afectos. E que é uma das causas profundas da pedofilia entre membros do clero.

A Igreja tem, na sua base bíblica e evangélica, uma fonte harmónica e integral que séculos de moralismo esconderam. Ao contrário do que diz Saramago, a Bíblia não é um manual de maus costumes. Mas, ao contrário do que pensam e dizem muitos católicos, ela tão pouco é um manual de bons costumes. A Bíblia é sobretudo uma proposta de relação – do ser humano com Deus e entre os seres humanos como imagem de Deus.

Aqui reside uma primeira dificuldade no exercício que a Igreja terá de fazer: muitos responsáveis católicos insistem numa abordagem dualista, legalista e pecaminosa (numa perspectiva greco-romana) da sexualidade. E que tem sido geradora de hipocrisias.

2. A crispada relação com a sexualidade reflecte-se também no modo como a doutrina católica olha a contracepção – e o preservativo, nomeadamente. Há quatro décadas, a encíclica Humanae Vitae interditou os métodos “artificiais” de planeamento familiar, apenas porque alguns cardeais da Cúria Romana não aceitavam a mudança doutrinal proposta por uma vasta comissão de médicos, teólogos e casais.

Se o Papa Paulo VI (que encarava a possibilidade de mudar a posição oficial) não tivesse cedido à pressão da Cúria, o preservativo não seria hoje um tabu doutrinal (mesmo se distribuído aos milhares por freiras e padres comprometidos na luta contra a sida, por exemplo). E o catolicismo das últimas décadas teria sido bem diferente.

Esta relação difícil do catolicismo oficial com a sexualidade tem manifestações visíveis como os abusos sexuais cometidos por padres sobre religiosas, em África, conhecidos há uma década; ou o padre mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, de quem se sabe que teve filhos de várias mulheres às quais ocultava a sua identidade, foi pedófilo, incestuoso e toxicodependente.

A instituição por ele fundada é exemplo dos grupos católicos que hoje, na Igreja, insistem na perspectiva moralista e para os quais a vida só importa quando se fala de aborto, preservativo ou homossexualidade.

Não é de estranhar que mais se condene quem mais moralismo apregoa e acaba por ter tantos pecados (ou crimes) no seu interior. Com uma agravante: as pessoas que confiavam os seus filhos a responsáveis da Igreja eram, em grande parte, membros da própria comunidade cristã. Para elas, o sentimento de terem sido traídas por aqueles em quem confiavam é esmagador.

3. A acusação de encobrimento atinge agora o próprio Papa. Na carta que escreveu aos irlandeses, há oito dias, Bento XVI acusa vários bispos de terem falhado “por vezes gravemente”. Seria estranho que o Papa tivesse escrito o que escreveu, se tivesse telhados de vidro. De outra forma, estaria agora sob escrutínio e sem autoridade perante os seus “irmãos bispos”.

Pode haver aqui duas coisas diferentes. Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), Joseph Ratzinger conhecia, obviamente, vários casos. Mas pode ser forçado dizer que os encobriu. O mais emblemático, noticiado pelo “New York Times” esta semana, revela que nem os poderes públicos agiram sobre o padre que abusou de 200 crianças – tal como aconteceu na Irlanda. E que Ratzinger só conheceu duas décadas depois dos factos.

O célebre documento de 1962 (que Ratzinger, então um padre com 35 anos, não escreveu, ao contrário do que muita ignorância afirma por aí), que defendia o secretismo, foi depois substituído em 2001, não para prosseguir a mesma orientação, mas para dar um passo em frente: o de obrigar os bispos a comunicar os casos de pedofilia ao Vaticano. Só nessa ocasião Ratzinger e a CDF passam a tomar conta destes casos, quando a questão já era um escândalo nos Estados Unidos (dois anos depois, João Paulo II chamaria vários bispos dos EUA para enfrentar a crise, pela primeira vez, de forma dramática). Só o total esclarecimento do papel do Papa em cada caso poderá aclarar de vez a sua quota-parte de responsabilidade – isso mesmo já foi pedido há dias pelo “National Catholic Repórter”.

4. O encobrimento e a tolerância social da pedofilia era a atitude normal até há três ou quatro décadas – o caso Polanski reapareceu a recordá-lo.

Durante séculos, a Igreja Católica entendeu-se como sociedade perfeita, sem necessidade de instâncias civis: tinha os seus tribunais, as suas penas, chegou a ter as suas prisões.

Também sabemos que a comunicação social é mais severa com a Igreja Católica do que com outros. E desproporcional: dá-se sempre mais dimensão aos escândalos do que aos caminhos de solução ou aos resultados, omite-se que o fenómeno atinge uma pequeníssima minoria do clero (embora bastasse um caso para que fosse grave). Sabe-se que os números aparecidos na Alemanha nas últimas semanas são resultado do trabalho iniciado pela Conferência Episcopal quando surgiram os casos nos Estados Unidos – mas isto também quase não é dito.

Mas desde 1990 há uma avalanche de casos. O que se passou na Irlanda, que durou até há poucos anos, mostra que não se atalhou o problema logo que ele começou. Em 1993, os bispos do Canadá publicaram um extenso documento com uma reflexão profunda sobre o tema e propostas de solução – que tiveram sucesso. O caminho deveria ter sido seguido em outros países.

Por isso não se entende a lamentável e infeliz declaração do cardeal Saraiva Martins: a Igreja é pela “tolerância zero”, mas não lava a “roupa suja” em público. Há mais de 60 anos, o Papa Pio XII dizia que a opinião pública é “vital” para a Igreja. Entenda-se, portanto, que a lavagem de “roupa suja” em público mais não é que uma desafortunada expressão para referir o debate interno, que está na matriz genética do cristianismo. E foi pela falta de tolerância zero que se chegou aqui.

5. A mês e meio da viagem de Bento XVI a Portugal, percebe-se que a crise continuará a revelar mais casos. Como em todas as histórias, percebe-se que também há interessados em atingir a credibilidade da Igreja. Mas esta tem que ser a primeira a reflectir o porquê dessa aversão e a procurar razões no seu interior – uma atitude própria desta Semana Santa que os cristãos hoje começam a viver. O cerco à volta de Ratzinger também continuará. Será, por isso, um Papa ferido aquele que virá a Portugal. Talvez rodeado por grupos interessados prioritariamente em defender a instituição dos “ataques” – já correm textos nesse sentido na Internet, em blogues, em mails…

Convém não esquecer que foi a preocupação pela defesa da honra da instituição que levou ao actual estado de coisas. Só uma atitude purificadora e aberta à mudança permitirá à Igreja recuperar a credibilidade perdida nesta crise. Os cristãos chamam a esse acontecimento ressurreição. E celebram-na no próximo domingo.

Sem comentários: