27 novembro 2008
quem, eu?
Este post na barbearia do senhor Luís tem-me dado que pensar.
O assunto tem pano para toda uma fábrica de confecções, mas deixo aqui alguns apontamentos:
1. "Houve um tempo em que até os barbeiros conseguiam juntar um pé-de-meia. Foi num tempo anterior ao tempo da "tanga", num tempo em que as pessoas comuns tiveram alguma folga no fim-do-mês."
Quando eu andava no secundário, aí pela segunda metade dos anos setenta, uma das minhas amigas usava a roupa que já vinha das irmãs mais velhas, mais um acrescento nas calças para continuarem a servir, mais uma barra de croché nas mangas do casaco de fazenda. Outra, tinha apenas duas saias e duas camisolas para toda uma temporada. Os pais de ambas conseguiram juntar um pé-de-meia, até compraram casa. Embora para o caso também convenha lembrar que nessa altura a inflação explodiu, mas as rendas de casa não, pelo que muita gente pôde comprar casa à custa do senhorio.
O Daniel Pennac escreveu recentemente um livro muito bom, "Chagrin d'école", onde fala também dos novos modelos de consumo. Nenhum aluno aparece hoje na escola com um pulôver tricotado pela mãe ou pela avó. Pior ainda: nem sequer conhecem os nomes das peças de vestuário que usam, mas as marcas. E já que estou com a mão na massa: alguém me sabe dizer como se chama aquele tipo de sapatos conhecido por "allstars"? No meu tempo chamavam-se "sapatilhas de ginástica", mas isso agora não serve, porque - como qualquer criança sabe - para ginástica usam-se adidas ou nike, mas não allstars...
2. A "tanga"
Pode ser que eu me dê com os portugueses de uma amostra enviesada, mas sempre que vou a Portugal vejo as pessoas a consumir como se o mundo fosse acabar hoje. Os restaurantes estão cheios, as pessoas andam bem vestidas, nas estradas quase só se vêem carros novos, e muitos deles bem caros.
Até os vizinhos da minha avó fizeram obras na casa - eles que, nos anos sessenta e setenta, tinham apenas uma muda de roupa para as duas filhas, de modo que uma ia à escola de manhã, vinha a correr para casa dar a roupa à irmã, que saía a correr para ir à escola de tarde. E, obviamente, todos os cinco filhos trabalhavam arduamente com os pais na lavoura.
Todos dizem que "isto está tudo muito mal, isto está tudo uma miséria, e cada vez pior" - mas eu, não sei, à mesa do restaurante, olhando para as carteiras e os sapatos impecáveis, vendo os miúdos enfiados em marcas e pendurados nos seus ipods, enfim, não sei, mas tinha ideia que crise é uma coisa bem diferente.
3. Perder a noção de tudo
O chart que se vê ali em cima refere-se à acção de uma empresa de software, lançada em fins de 1988 a um preço que hoje corresponderia a 0,5 euros. Vinte anos mais tarde, apesar da actual crise financeira, do rebentamento da bolha da internet e tudo isso, anda pelos 25 euros. O que dá um ganho de 50:1 em vinte anos, mesmo vendendo nesta época de crise financeira. Quem vendeu em 2000, terá tido um ganho de 120:1 em onze anos.
Perante um chart assim, é mais fácil perceber que os investidores percam completamente a noção da realidade.
A realidade que conhecem é uma acção subir 3% ou 5% num dia, e esses saltos se repetirem várias vezes num mês.
Esta empresa, em particular, nem sequer despede pessoal aos milhares para aumentar o seu valor na Bolsa - pelo contrário, continua a oferecer emprego.
Nos anos noventa, jogar em acções desta empresa (e de muitas outras, obviamente) oferecia uma probabilidade de lucro muito mais alta que jogar no totoloto ou na lotaria, sendo igualmente legal.
De modo que as pessoas habituaram-se a ter retornos de mais de 20% ao ano sem crises de consciência. E perderam a noção de tudo.
4. Nos últimos três anos, o Citibank contactou-nos várias vezes para nos propor aplicações mais vantajosas para as nossas poupanças. Nós é que tínhamos mais que fazer, e além disso não há amor como o primeiro (a tal acção do ponto 3, que nos deu muitas alegrias), tanto mais que já algumas vezes caíramos na asneira de diversificar o portfolio e ficáramos a ver as nossas queridas acções subir, enquanto o nosso portfolio não saía da cepa torta, até acabarmos a vender tudo, e a voltar ao primeiro amor agora muito mais caro...
Em Setembro, quando começou a derrocada, ficámos a saber o que é que o Citibank provavelmente nos teria oferecido: títulos do Lehman Brothers, que foi o que vendeu como aplicação muito segura e confiável a velhinhas de oitenta anos.
Como é possível resistir a um consultor bancário no seu escritório em tons de azul, numa instituição bancária de renome, que nos diz que os novos mercados financeiros bla bla bla e a globalização bla bla bla e as economias asiáticas bla bla bla e que esta é uma oportunidade única e não faz sentido ter o dinheiro a dormir a juros de 4% ao ano, e se queremos continuar feitos velho do Restelo no alvor do terceiro milénio, e se queremos perder o comboio para o admirável mundo novo?
Tanto mais que, nos anos noventa, as pessoas habituaram-se a achar normal ganhos da ordem dos 20%/ano.
5. Em 2005 comprámos uma casa em Weimar, recorrendo a um empréstimo bancário. Que teremos - pois é a triste lei da vida! - de pagar. Um consultor financeiro sugeriu-nos várias vezes usar as poupanças destinadas ao reembolso do capital em aplicações que rendem muito mais. Dizia ele: continuam a pagar juros de 4% ou 5%, enquanto esse capital vos rende pelo menos 20%, tudo muito seguro, tudo favas contadas!
Quando lhe perguntávamos como é que ele conseguia o milagre, tornava-se vago. E mais vago ainda ficava se lhe perguntávamos pela actividade empresarial subjacente: haveria armas pelo meio? negócios de guerras? exploração nua e crua de economias colonizadas? Ele tartamudeava. Uma vez, explicou-me: "quem diz A, tem de dizer B". Cesteiro que faz um cesto...
O mais interessante é que vinha de uma família de alemães da RDA idealistas do comunismo. Críticos do sistema político que se vivia, mas acreditando piamente nos amanhãs que cantam. Ele próprio dizia que um mundo muito melhor seria possível, se o estalinismo não tivesse assassinado a maior parte dos comunistas bons.
Depois aconteceu-lhe a reunificação, ele disse A, e viu-se obrigado a dizer B e todo o restante abecedário do capitalismo selvagem.
Mas nós, saciados por uma acção com óptimo desempenho e bastante transparência, e vindos de um mundo onde as referências se mantêm relativamente estáveis, para mais acossados pelos nossos amigos católicos fundamentalistas que insistiam para que abríssemos uma conta poupança num banco cristão (sim, que isto não é só o Ambrosiano; parece que há por aí bancos e companhias de seguros que fazem questão de procurar aplicações eticamente aceitáveis para os capitais), não nos víamos nada obrigados a concordar B com ele.
6. Voltando à questão do consumo: o escândalo nosso do dia de hoje, vem no Spiegel online, são as condições em que trabalham os desgraçados do Bangladesh que fazem os jeans para vender no Lidl e outros do género a menos de 10 euros. Mas nós compramos, não é?
Na Alemanha, o sector comercial que dá mais lucro é o dos discounts. As lojas onde há sempre pechinchas, que toda a gente gosta de comprar, sem se perguntar como é possível colocar no mercado produtos àquele preço.
Tudo isto para dizer que sim, concordo com a crítica do Luís sobre "a inocência e a admiração quando agora muitos ficaram a saber que afinal o seu dinheiro financiava negócios escuros e ilegais", mas contraponho que os nossos modelos de consumo e os mercados financeiros nos últimos vinte anos evoluíram de tal maneira que qualquer um poderia perder o pé. Ou a ética.
Não são só as aplicações de capital: é todo o nosso estilo de vida que só é possível por recurso a negócios escuros e ilegais.
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