Fim das férias, e regresso a Berlim e aos noticiários alemães. O primeiro que vi, o Heute Journal de domingo, dia 7.9., analisava a actual situação política nos EUA. Partilho o filme, com esta tradução rapidíssima:
0:00 -- Um rei - é assim que Trump se apresenta - publica esta imagem nas redes sociais. "Long live the king", um rei que governa como lhe apetece. Trump: "Tenho o direito de fazer o que quiser, sou o presidente dos Estados Unidos." Na realidade, a Constituição impõe limites ao poder do presidente, prevê a separação de poderes. O presidente está sob o controlo do Parlamento e da Justiça. Mas Trump estica os limites até um ponto de ruptura. Será que a América chegou a um ponto de viragem? 0:31 -- Prof. Laurence Tribe, antigo professor de Direito Constitucional em Harvard: "Penso que já chegámos ao principal ponto de viragem, e já fomos além dele. Falo do sistema de checks and balances. Já não dispomos dele, as barreiras de protecção estão a ceder. A Democracia não morre num momento preciso. Não faz sentido procurar um ponto de viragem, como se em algum momento houvesse uma linha vermelha a atravessar. É mais uma zona vermelha que uma linha vermelha. E já nos encontramos em plena zona vermelha.
1:09 -- Para contornar a Constituição e o Parlamento, Donald Trump decreta estados de emergência que lhe permitem alargar os poderes presidenciais. Quando os juízes declaram a ilegalidade das medidas, já estas foram postas em prática há muito. Exemplo: militarização. Trump envia soldados para o território nacional - até agora, apenas em cidades governadas pelo Partido Democrata. A National Guard em Los Angeles, agentes de uniforme a ajudar facínoras mascarados a capturar nas ruas imigrantes sem documentos, para os deportar com um processo sumário. A desculpa para a presença dos soldados nas ruas? Um suposto estado de emergência ligado a imigrantes, um suposto estado de emergência criminal. 1:45 -- A secretária de Segurança Interna, muito incisiva, refere um outro objectivo: uma tomada do poder: "Continuamos aqui para libertar Los Angeles da sua liderança socialista e opressiva."
2:00 -- A separação de poderes deixou de funcionar. O Parlamento não controla o presidente. Os democratas, sem uma liderança clara, vagueiam sem rumo a reboque dos acontecimentos. A maioria republicana entende ser sua tarefa seguir Trump cegamente. Troy Nehls, republicano, membro da Câmara de Representantes: "Ele lidera. Se nos mandar saltar e coçar a cabeça, é o que faremos. That's it."
2:26 -- O aparelho governamental foi metido na linha: quem discorda vai para o olho da rua. Os elementos leais a Trump usam as instituições governamentais para perseguir adversários que desagradam ao presidente. Exemplo: John Bolton, antigo consultor de segurança e agora crítico de Trump. O FBI foi lançado no seu encalço com base em acusações que já tinham sido esclarecidas há anos. As investigações não revelaram nenhuma anomalia. Destinavam-se apenas a intimidar e calar esta voz crítica, tal como muitas outras, nomeadamente: os media, a ciência, a cultura e a oposição.
3:00 -- Stephen Miller, o homem por trás de Trump e seu mentor, emite um aviso drástico: "O Partido Democrata não representa os cidadãos da América, nem luta por eles. É uma organização que se dedica unica e exclusivamente à defesa de criminosos, violadores, e também assassinos e terroristas que entram ilegalnmente no país. O Partido Democrata não é um partido político, é uma organização extremista interna." Se a oposição, o Parlamento e os media falham, a última instância é o Tribunal Constitucional. Mas, na sua maioria, os juízes deste tribunal seguem a linha de Trump e já ampliaram os seus poderes.
3:46 -- Prof. Laurence Tribe: "Seria errado dizer que os tribunais falharam no seu conjunto. Mas também seria errado dizer que os tribunais nos podem salvar. No fundo, o que é necessário agora é a mobilização de todos os americanos que ao menos parcialmente percebem o que significaria viver inteiramente sujeitos a uma ditadura autoritária e déspota. É preciso que se unam e se ergam em protestos generalizados."
4:20 -- Mas não há sinal de protestos generalizados. Em seu lugar, faixas sinistras do presidente nos edifícios ministeriais. O povo está demasiado exausto para se erguer. Uma e outra vez, o governo responde às questões críticas com uma frase simples: "confiem em Trump."
4:40 -- Que rumo levam os EUA? Fiz esta pergunta a um dos filósofos americanos mais famosos da actualidade, Jason Stanley. O fascismo é um dos temas que mais estuda. Até este ano, era professor em Yale, mas decidiu sair dos EUA devido ao clima político, e é agora professor no Canadá, na Universidade de Toronto. 5:06 -- Entrevista: - Vendo estas cenas dos EUA, estes memes, estas faixas com o retrato de Trump e também estes apelos "confiem em Trump!", ficamos com a sensação de estarmos perante um culto do líder, o que é uma das caracteríristicas do fascismo. Ou será que estamos a exagerar? - Não. Essa é a designação correcta. O nosso país tem a sua própria história de fascismo. Hitler elogiou os Estados Unidos no Mein Kampf. Não é novidade para nós. Este culto do líder está mais próximo do fascismo europeu. Jim Crow, o nosso sistema racista nos Estados do Sul, só terminou em 1965. O que foi descrito como fascismo por americanos negros. - Está, então, a afirmar que a Democracia norte-americana não é tão antiga quanto se pensa na Europa, que vê nela um modelo?
- Exactamente. Somos uma Democracia jovem. Só desde 1965, com o nosso Voting Rights Act, nos tornamos democráticos. Até então, éramos uma Democracia da "raça superior". E mesmo no presente: o sistema prisional norte-americano é o maior do mundo. A percentagem de prisioneiros em West Virginia é dez vezes maior que na Alemanha. No Ohio, nove vezes maior. O nosso sistema era, é democrático? No presente, é óbvio que não é um sistema democrático. Mas será que os EUA foram alguma vez uma Democracia? Certamente não foram uma Democracia saudável.
- Diria que os Estados Unidos já não são uma Democracia? Ainda há eleições, ainda há liberdade de imprensa, ainda não assistimos à prisão massiva de membros da oposição, e tudo o mais que associamos ao fascismo.
- Temos de parar de falar sobre o possível fim da Democracia norte-americana. Já passámos esse ponto há muito. Neste momento, os Estados Unidos têm um regime autoritário. Podemos discutir se é fascista ou não, mas já não há limites. Diz que os políticos da oposição não estão a ser enviados para Sachsenhausen ou algo assim, mas estão a ser atacados pelo nosso sistema de Justiça, o nosso "sistema de Justiça". Vemos que Trump processou o senador californiano Adam Shift, bem como outros políticos do Partido Democrata. Já está a começar. Não é ainda 1938 na Alemanha, mas já é 1933.
- Ou seja: um clima de medo, no qual todos temem perder o seu emprego, ou pagar um preço muito alto se, por exemplo, criticarem Trump ou tomarem uma posição pública contra algo.
- Sim. Vemos isso por exemplo no jantar dos Tech-CEOs com Trump e a sua mulher, na semana passada. Parecia uma cena da China, ou da Coreia do Norte, e não de uma Democracia. Todos lhe teceram enormes elogios. Os próprios líderes europeus fizeram o mesmo. É a maneira de se relacionar com ele agora, o que está longe de ser o normal num sistema democrático.
- A ausência de reacção por parte dos democratas, da oposição, surpreende. Como a explica?
- Vejamos: a Alemanha também tem um partido fascista, a AfD, ao qual o regime norte-americano está intimamente ligado. O nosso State Department foi reorganizado, e recebeu um novo elemento: o departamento da remigração. Vemos que as ligações são muito fortes. Mas na Alemanha há uma resistência clara a este partido anti-democrático. Algo que não acontece entre nós. Porquê? Talvez porque a nossa Democracia já não estava saudável há muito tempo.
- Um cenário muito sombrio. Prof. Stanley, obrigada pela entrevista.
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