24 junho 2025

Mascha Kaléko


Fique registado que no dia 23 de Junho de 2025 descobri a poeta Mascha Kaléko (1907-1975), e que a descobri por um poema que me deixou o dia inteiro a pensar como podia ser traduzido. 

De modo que agora tenho duas dúvidas: como traduzir este poema, e como me aconteceu ter andado tantos anos sem saber da existência da Mascha Kaléko. 

O problema central da tradução deste "Take it easy!" é que usa uma expressão idiomática, "pôr no ombro fácil" em tradução literal, com o sentido de não levar as coisas muito a sério. Pensei em "fechar um olho", mas a expressão portuguesa tem uma conotação mais próxima de tolerar algo que se sabe não estar certo - o que não é bem a mesma coisa. Seria mais "deitar para trás das costas", mas o texto exige que haja um contraponto, e fazê-lo com costas e barriga era o anticlimax do poema. Porque, convenhamos, na tradução de poemas, o meu desplante vai ao ponto de virar os versos sem pensar na métrica, nem na rima, nem no ritmo, nem na música -  mas anticlimax já é abuso! Até para mim. 

Portanto, para os mais curiosos, aqui deixo a tradução do sentido do poema, usando a tradução literal da expressão idiomática:


"Take it easy!"

Tehk it ih-si, dizem-te
Em inglês, para mais. 
"Põe no ombro fácil!"

Acontece que tens dois.
Põe sobre o fácil. 

Obedeci a este imperativo
Popular humanitário.
E fiquei torta. 
Porque o outro ombro
Também existe.

Por desdita há então que se forçar 
A escolher, às vezes, o mais difícil. 



Mascha Kaléko nasceu em 1907 em Chrzanów, perto de Auschwitz, filha de um casal de judeus - de mãe austríaca e pai comerciante russo. Em 1914, por causa da guerra, ou talvez por causa da violência crescente dos pogroms no Leste da Europa, a família decide fugir para a Alemanha, onde não é bem recebida. Devido à sua nacionalidade, o pai chegou a estar preso num campo de "estrangeiros inimigos".

(...) Já tinha seis anos, e ainda acreditava
Que no fim das guerras havia paz.


Em 1918, instalam-se em Berlim. Mascha aprende secretariado, e observa a Berlim dos anos vinte. Escreve de forma simples sobre o que conhece e vivencia. O quotidiano na grande metrópole. O amor e a fragilidade. A condição das jovens mulheres emancipadas daquela época, a sua tosca emancipação ("Vivemos de pão e chá / porque é barato. / Por vezes há quem nos ofereça um souper / ...se estivermos disponíveis. (...) De nada serve todo o crêpe satin / Somos os que somos: apenas manequim."). Escreve sobre a liberdade de costumes dessa década berlinense ("Aqui e ali beijos em bancos tranquilos / - ou então em barcos a remos. / O erotismo é reservado para os domingos. / ...E quem se lembra de pensar no futuro? / Chamamos as coisas pelos nomes, e só raramente coramos."

No famoso Romanisches Café, mesmo em frente à Gedächtniskirche (onde é agora o centro comercial Europa-Center, ao fundo do Ku'damm), consegue passar da "piscina dos pequeninos" para a "piscina dos nadadores", a pequena sala à esquerda onde diariamente se encontram os mais importantes jornalistas, críticos, escritores, artistas plásticos, músicos e actores daquela época: Else Lasker-Schüler, Gottfried Benn, Georg Grosz, Alfred Döblin, Bertolt Brecht, Hanns Eisler, Erich Kästner, Stefan Zweig, Erich Maria Remarque e tantos outros.

No final dos anos vinte já é uma autora aclamada. O primeiro livro publicado esgota rapidamente. Diz-se que só a poesia de Goethe vende mais. 

Trabalho oito horas como empregada
Por má paga cumpro as tarefas do dia
Em certas noites escrevo poesia
O meu pai diz, era só o que nos faltava. 

A pouco e pouco, chega a mudança radical. Os nazis conquistam o poder. No centro de Berlim, na praça entre a ópera e a universidade, atiram livros à fogueira. Por agora, os livros de Mascha Kaléko escapam, porque o regime ainda não se deu conta de que é judia. No Romanisches Café, aparece um grupo de homens em uniforme a perguntar por Walter Mehring, cuja recente peça de teatro irritara os nazis. Mascha Kaléko arma-se em inocente, distrai-os com uma longa conversa, enquanto Mehring escapa discretamente do local, atravessa a praça em direcção à estação do Jardim Zoológico, e apanha sem demora o primeiro comboio para Paris. Em 1937, o seu editor dá-lhe a terrível notícia: está proibida de trabalhar como escritora e de publicar. 

Em Setembro de 1938 consegue fugir para os EUA, com o filho e o marido. Mesmo a tempo! Um mês mais tarde, o regime nazi declara que os passaportes de judeus já não são válidos, e dois meses mais tarde incendeia sinagogas e empresas de judeus em todo o país. Mascha Kaléko e a família estão a salvo em Nova Iorque, mas ela não se sente feliz ("Tudo à minha volta desabrocha à luz do sol / Mas esta Primavera não é a minha"). O casal tenta criar em Greenwich Village um café com um ambiente semelhante ao do Romanisches Café, mas sem sucesso. Torna-se claro que esse tempo passou, e não voltará nunca. O marido é músico, encontra facilmente trabalho. A poeta em língua alheia vê-se remetida para funções de mãe, esposa e assistente do marido. 

Os homens com ofício têm sempre
um tesouro, normalmente feminino.
O que faz falta às mulheres
É a "esposa do artista". Ou um substituto equivalente. 
Mesmo que não seja uma Vénus,
Com doce boquinha de rosa,
Está por ali, escreve bem à máquina, e cozinha.
(...)
Quando Siegfried desembainhava a espada, e Don Carlos o punhal, 
raramente os chamavam para irem mudar as fraldas ao bebé. 
A alma de Petrarca, afastada do mundo, compunha os seus poemas
Livre de obrigações tais como limpar os legumes.

Bem gostaria de continuar estas linhas, mas, como sempre, tenho de interromper.
- O meu marido chama. Quer falar comigo sobre o seu próximo concerto


Regressam a Berlim em 1956, e Mascha kaléko dá-se conta de tudo o que já não existe na sua cidade  tão amada: 

Berlim na primavera. Berlim sob a neve.
O meu primeiro livro numa livraria.
Os amigos no Romanisches Café.
O tanto que vejo que já não vejo!
Tão alto me falam as pedras de "Pompeia"!
Engolimos ambos o remédio por fim.
Pompeia sem pompa. Bonjour, Berlin!


Numa retrosaria da Uhlandstraße, ao comprar um artigo qualquer, é reconhecida pela dona da loja, que vai ao fundo da loja buscar o seu livro "caderno lírico de estenografia", a primeira edição de 1933. Diz-lhe que o guardou durante todo aquele tempo terrível, e pede-lhe um autógrafo. 

Outros encontros não são tão aprazíveis. O tempo da inocência já vai longe. No país que quis exterminar um povo, nunca sabe com quem está a falar, que tipo de experiências fez essa pessoa, como a vê, e que espécie de discurso espera dela. 

Em 1956, ao saber que o prémio Fontane, da Academia das Artes de Berlim, lhe será entregue por um antigo membro das SS, recusa-se a recebê-lo. O secretário geral da Academia tenta persuadi-la a aceitar, diz que o escritor e membro do júri já ultrapassou há muito aquele seu erro de juventude, que é muito bem visto em toda a sociedade. Diz-lhe que a Academia se sente muito satisfeita por conseguir atrair um crítico tão conceituado, pede-lhe para considerar que ele precisa daquele cargo porque não consegue viver apenas do que escreve, e que todos temos uma família para sustentar. Apela à sua sensibilidade e empatia de mulher. Ela explica que, como emigrante, também não tem a vida fácil. No estrangeiro, perguntam-lhe como se pode identificar de novo com o mundo da escrita de um país que continua a manter nazis em lugares de destaque. Que irá ela responder depois de receber um prémio de literatura das mãos de um antigo SS? Não, por muito que o prémio a honre e o montante lhe faça falta, não pode aceitá-lo nestes termos, nem como escritora nem como judia. O director explode: "Não sou judeu, e passei por dificuldades iguais ou até maiores que os judeus. E não é possível acusá-lo eternamente por causa de um erro de juventude. Só se tornou SS por ser tão alto. Tudo isso já foi ultrapassado e está resolvido..."

Nunca mais foi nomeada para um prémio de literatura. 

Como sempre, continua a escrever poemas sobre a sua vida e os seus contextos. Os editores pedem-lhe mais leveza, mais humor, tal como escrevia antes. A vida é difícil para todos, dizem, o público precisa de textos estimulantes. Os poemas melancólicos e desanimadores não fazem falta a ninguém. 

A Alemanha do pós-guerra remete Mascha Kaléko para o esquecimento. O seu nome não consta dos léxicos da literatura alemã, nem mesmo em 1990. E a sua obra integral só é publicada em 2012. E talvez isso ajude a explicar porque andei todos estes anos sem saber dela. 

O casal emigra para Israel em 1960. Nova língua, novo exílio. 

Para onde quer que viaje, 
Vou para Lugar Nenhum

    

E também:



Inventário

Casa sem telhado
Criança sem cama
Mesa sem pão
Estrela sem luz.

Rio sem cais
Montanha sem cabo
Pé sem sapato
Fuga sem destino.

Telhado sem casa
Cidade sem amigo
Boca sem palavra
Floresta sem cheiro.

Pão sem mesa
Cama sem criança
Palavra sem boca
Destino sem fuga. 


Termino com um poema seu (traduzido, tal como todos os anteriores, muito à pressa) que parece uma mensagem enviada ao nosso tempo:


Neste tempo

Não temos outro tempo senão este, 
Que para nós inclina escasso copo.
Temos de beber. Uma segunda vez
Não floresce para nós.  À distância, já um monstro:

Efemeridade. Somos meros seres fugazes
Por trás de toda a luz, a palidez nos avisa.
Já se derrama em nós o gelo de um brilho tardio
E somos velhos antes de ter sido jovens.

Chegámos outrora com a credulidade da infância
A um século devastado pela tempestade. 
Ainda temos esperança. Dentro de nós um silêncio de espanto.
Mas só recebe ajuda quem grita.

Por vezes sonhamos com o paraíso
E o desejo de felicidade nos envergonha.
Famintos, tentamos conquistar o nosso pedaço. 
- Não temos outro tempo senão este...


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Quase todas as informações contidas neste texto foram retiradas de um programa da SWR3, de 5.1.2025:

„Ich habe mit Engeln und Teufeln gerungen“ – Lebensspuren der Dichterin Mascha Kaléko, de Simone Hamm.

Mais alguns poemas:

- Traduzidos para 
português: https://escamandro.wordpress.com/2018/06/27/mascha-kaleko-por-valeska-brinkmann/  

- E para inglês: https://thehighwindowpress.com/2022/08/08/mascha-kaleko-four-poems/ 

- E para espanhol: https://poemashumanos.com/2018/09/13/y-patria-es-solo-donde-estoy-contigo-tres-poemas-de-mascha-kaleko/

E um pouco de música: https://www.deutschelyrik.de/einmal-sollte-man.html


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