16 abril 2025

*purgatório*

"Aqueces o azeite, pões o bife de fígado na frigideira e rezas uma avé-maria pelas almas do purgatório. Depois viras, e rezas outra vez."

Foi assim que a minha mãe me ensinou a encontrar o ponto certo da fritura.

No Minho católico da minha infância, a responsabilidade dos vivos pela memória e pelo bem-estar dos mortos era omnipresente. Da frigideira ao lume até às alminhas nas fachadas das casas e nas encruzilhadas, passando pelos cemitérios de flores sempre frescas, os nossos mortos eram mais do que uma recordação querida e uma ausência triste: continuavam a precisar de nós, da nossa atenção e do nosso cuidado.

O purgatório - esse lugar de sofrimento após a morte, onde as almas expiam os seus erros antes de poderem, enfim, descansar em paz - desempenha um papel peculiar neste entendimento do mundo. Ao dar aos crentes a possibilidade de, com as suas orações, abreviarem a dor dos que estão no purgatório, a Igreja Católica oferece uma ponte que liga os vivos aos mortos num abraço de empatia actuante: o poder de cuidar dos outros para além da própria morte. Mais ainda: o purgatório é um espaço de depuração de questões existenciais dos vivos. Por um lado, repõe a justiça no mundo, porque castiga as pessoas pelo mal que cometeram em vida; por outro lado, abre a cada um dos crentes um caminho de libertação interior, transformando os sentimentos negativos em gestos de aceitação da fragilidade dos humanos e de perdão.

[ E agora que o fígado está frito e as duas avé-marias rezadas, pergunto a quem me lê: por quem gostariam de rezar enquanto fazem a cebolada? ]

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4 comentários:

Susana Rodrigues disse...

Neste momento, gostaria de rezar pelos quase metade de norte-americanos que devem estar numa infelicidade imensa ao assistir às decisões emitidas por um gajo com uma inteligência inferior à de uma cabeça de alfinete.
Mas há muito muito mais gente por quem rezar. Infelizmente.
Boa Páscoa!

Helena Araújo disse...

Por esta altura, já devem ser bem mais do que metade.
Boa Páscoa, Susana.

jj.amarante disse...

Contei esta história a um ligeiramente mais idoso do que eu e ele contou-me que na Madeira as cozinheiras, além das Ave-Marias para o fígado, tinham outras orações para outros cozinhados como, por exemplo, ovos escalfados. Dizia que o tempo mais extenso era o dado pelo Credo.

Helena Araújo disse...

jj.amarante, o Credo quase dá para assar um borrego inteiro! ;)