Este blogue está em serviços mínimos, desculpem. É que não dá mesmo para preparar férias, gozá-las, e escrever ao mesmo tempo. Mas não quero faltar ao compromisso com o meu novo grupo de escrita sobre o tema da semana. Tanto mais que "até o diabo se ria" foi um tema que escolheram por eu ter usado essa expressão.
"Até o diabo se ria", "dar água sem caneco", "à grande e à francesa" são expressões que levei comigo para a Alemanha, em finais dos anos oitenta, e lá ficaram na minha vida. Não havia internet, as chamadas telefónicas eram caríssimas, os jornais chegavam em papel e as notícias que traziam já cheiravam a peixe. Em Portugal a língua ia evoluindo, entretanto havia quem dissesse "cota" em vez de "velho", e eu transformava-me num museu vivo do português que se falava no Minho dos anos sessenta e setenta, e no Porto a seguir ao 25 de Abril. O "ó pá" e o "gajo" andavam de mãos dadas com o "é só fumaça", o "há mar e mar" e o mais antigo "a quem nos visita, o sol da nossa simpatia". Saboreava a música e o prazer das memórias que essas expressões transportavam. E resistia: os meus amigos portugueses diziam "com vocês", mas eu ensinava "convosco" aos meus filhos alemães. Pode alguém ser quem não é?
E assim ia a vida, até ao dia em que a minha filha largou uma gargalhada no banco de trás do carro, e traduziu para o irmão pequenino:
- Olha o que a mãe acabou de dizer ao pai: "Weder sage ich es, noch erzähle ich es dir."
Era "nem te digo nem te conto", e eu, que já ia lançada na história que acabara de anunciar que não revelaria nunca, parei a pensar na surpresa destas expressões tão sumarentas, as minhas velhas conhecidas, que se esvaziavam completamente na tradução literal.
Lembro-me bem da forma do caneco de lata com que se tirava a água do pote de barro na cantareira de granito. Mas que imagem terão os jovens de hoje, quando alguém diz que dá água sem caneco? Que pensarão do ralhete "então saíste sem dizer água vai?", quando nem sequer está de chuva?
E quem se terá lembrado de pôr o diabo a rir se não acontecer algo que é absolutamente provável? O diabo só ri quando o mundo descarrila por inteiro? Nos dias normais: anda carrancudo? Enquanto nós vamos fazendo pela vida, acertando e errando à medida do que podemos, o diabo não é tido nem achado? Só começa a achar realmente graça (só começa a rir a bandeiras despregadas) quando - digamos - nós começamos a não saber que dois e dois são quatro, que a terra é redonda, que a perfeição não existe e que ninguém faz milagres?
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No início desta semana, pensava escrever um texto sobre a musicalidade destas expressões idiomáticas. "Até o diabo se ria", por exemplo: é uma exclamação linda, que nos põe bem dispostos e reforça a nossa confiança na normalidade do mundo.
Mas entretanto o governo caiu e já vi pelas cidades cartazes de um partido que alimenta o descontentamento com o que está mal para iludir as pessoas com a ideia de que - eles sim! os que metem no Parlamento ladrões de esmolas e de malas, gente que recorre à deficiência para achincalhar pessoas - sabem fazer perfeito. O diabo vê, e desata a rir com quantos dentes tem na boca.
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