06 fevereiro 2024

como lutar contra a extrema-direita



Perante os ataques à Democracia - pérfida e cuidadosamente preparados - a que assistimos de momento em tantos países, perante sondagens que apresentam valores assustadores para a intenção de voto na extrema-direita, a questão que está na ordem do dia é: que fazer?


1. 
Começo pelo mais simples de todos: votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. Votar. 

Votar, enquanto podemos. É gratuito e eficaz.
Se cada um de nós convencer um absentista a ir até à cabine de voto para votar num partido democrático, a extrema-direita perde imediatamente o impacto que tem neste momento. 

Votar, sim - mas cuidado com os votos de protesto:



2.

Um texto de Christian Stöcker recentemente publicado no Spiegel Online apresenta algumas sugestões sobre como lidar com a extrema-direita, partindo dos resultados de estudos científicos. Sumariamente, é isto:

Em primeiro lugar, todos os partidos democráticos têm de recusar liminarmente a redução da realidade a simplificações e dicotomias ilusórias. Quando o discurso dos partidos democráticos começa a imitar o populista, quem ganha são os populistas. O problema é que, em tempos conturbados como os nossos, os populistas têm sucesso porque oferecem respostas simplistas a problemas complexos: a culpa é dos outros. "Nós contra eles". "Populistas de direita imaginam que o mundo está dominado por uma ímpia aliança entre as elites e os grupos parasitas das classes de rendimento mais baixas, e nenhum desses grupos representam o verdadeiro povo." (Jan-Werner Müller, especialista deste tema) Portanto: um mundo reduzido a dicotomias, dividido em dois lados antagónicos. Que os oportunistas da extrema-direita vivem desse modelo de negócio, é algo que todos sabemos. A questão é: quanto pensamento dicotómico se infiltrou já no discurso dos partidos democráticos? O autor dá um exemplo dos partidos da direita alemã: começaram a chamar "economia planificada" (ou seja, a invocar o fantasma do sistema socialista de produção) para criticar qualquer tentativa de regulação estatal que não seja conforme aos interesses dos seus eleitores. Uma outra simplificação absurda é a da ilusão que sequestra a classe média para um dos campos ideológicos, como se esta não estivesse bem distribuída por todos os partidos. (Acrescento ainda outra ideia: quando um partido de direita critica os partidos à sua esquerda usando as palavras/ideias da extrema-direita, esta contaminação do discurso conduz à contaminação do eleitorado de direita. Que acabará por votar no original, sempre mais interessante que a cópia.)


Em segundo lugar, todos os partidos democráticos têm de denunciar e criticar posições e argumentos racistas como tal - e evitar usá-los, obviamente. Identificar minorias como o problema central do país, e fantasiar que o país fica melhor se as perseguir com determinação, não é apenas um atentado à dignidade humana - é também irracional. Nenhum país vai ficar melhor se expulsar os imigrantes (ou, acrescento eu, se identificar os movimentos LGBTQ+ como ameaça e "inimigo a abater").

Mais uma vez: ajustar o discurso dos partidos democráticos à narrativa da extrema-direita não reduz o apoio aos partidos radicais.


"a dignidade humana não é um conjuntivo"


Em terceiro lugar, todos os partidos democráticos têm de parar de trazer os temas da agenda da extrema-direita para o centro do debate público. Adoptar esses temas faz com que se tornem erradamente temas centrais da sociedade, quando são apenas instrumentais para a estratégia de conquista de poder da extrema-direita. Um erro gravíssimo, porque dar visibilidade mediática a um determinado tema faz crescer a base de apoio do "dono" desse tema. Claro que os partidos democráticos podem debater algumas das questões levantadas pela extrema-direita, mas nunca podem cair na tentação de rebaixar o seu discurso para o nível desta.

A propósito, dois trabalhos importantes: - "issue ownership" (John Petrocik): os partidos beneficiam directamente da frequência com que os seus temas aparecem no debate público; e os partidos da oposição beneficiam de forma desproporcional porque não têm nada a perder e têm muito a ganhar. Mais: quebrar tabus garante automaticamente publicidade mediática. - "blue-green study" (Serge Moscovici): mostraram tons de azul com diferente intensidade de luz a um grupo de pessoas, que tinham de dizer o nome da cor. Entre elas, havia algumas instruídas para dizer sempre "verde", o que acabou por convencer parte das outras, que começaram a dizer também "verde". No caso do estudo, bastou que 0,25% dos participantes repetissem obstinadamente uma mentira para levarem consigo 8,42% da maioria que até então identificava a cor como o azul que, de facto, era.

Aqui (acrescento eu), a ideia de cordão sanitário a todos os níveis é fundamental. Mais uma vez: quando os partidos democráticos se deixam contaminar de alguma forma pelos populistas, são sempre estes últimos que ficam a ganhar. Os políticos sérios têm de se distanciar da extrema-direita, do seu estilo de debate e dos seus temas. Têm de ser o adulto na sala, que mantém os temas realmente importantes para a sociedade no centro do debate público, em vez de permitir que este seja dominado pelas parangonas dos provocadores. Vale para os políticos, e também para os jornalistas e os cidadãos que se movem nas redes sociais.


"porque CDU e CSU não são barreiras corta-fogo"


Em quarto lugar, em vez de adoptar os temas dos populistas, os partidos democráticos devem desmascarar e tornar muito visível a falta de credibilidade, a hipocrisia, as mentiras e a charlatanice dos populistas.

Sobre este quarto ponto, acrescento apenas que os jornalistas também têm um papel muito importante a desempenhar.

Retratados: Alice Seidel e Bjorn Höcke, do partido populista da extrema-direita alemã. Na base: "pessoas que recusam integrar-se na nossa sociedade" (alusão a um dos motivos considerados pela extrema-direita para expulsar cidadãos alemães descendentes de estrangeiros) À esquerda: "mais dinheiro para os programas de apoio à saída de grupos radicais" À direita: "Pregador que incita ao ódio" (alusão a alguns pregadores radicais em mesquitas alemãs)


"lobo em pele de cordeiro"


Em quinto lugar, e esta é uma tarefa para toda a sociedade, e não apenas para os partidos: sempre que haja essa oportunidade, deixar bem claro que o apoio às posições dos populistas de extrema-direita é algo considerado recriminável pela sociedade.


"Make racism wrong again"




"Não temos nada contra estrangeiros, mas...
Nem mas, nem meio mas!"


3. E assim chegamos ao último ponto deste post: a importância da sociedade civil para travar a deriva populista de uma minoria que tem sabido dominar habilmente o espaço mediático. Na Alemanha, há cerca de um mês que as manifestações contra a extrema-direita não param. Já é, de longe, a maior onda de protestos de sempre na História deste país.

Por estes dias, penso com enorme admiração nos manifestantes dos Estados onde a extrema-direita está prestes a chegar ao poder. Coragem civil é isto: pessoas de cidades pequenas, onde se acaba por saber onde mora cada um, que vão para a rua participar em manifestações contra a extrema-direita, apesar de andarem por ali bandos de neonazis a rondar.

Em Berlim, pelo contrário, é uma festa. Há duas semanas, participei aqui na primeira destas manifestações. E no sábado passado também, porque a Democracia precisa de todos e também porque várias centenas de milhares de manifestantes com cartazes feitos à mão é algo lindo de se ver: uma pessoa já começa a comover-se no comboio bem mais cheio que de costume, já tem dificuldade em controlar a emoção na estação central, ao ver aquelas plataformas, aquelas escadas, aquelas ruas, aquelas pontes e aquelas praças invadidas por uma multidão "com ideias de todas as cores menos castanho", unida pelo amor à Democracia.


Berlim encheu-se de novo de cartazes com mensagens pessoais, que as pessoas pensaram e desenharam em casa, em placas de cartão. Já partilhei alguns acima, com a respectiva tradução.

Outros exemplos: - "Bisavós contra o fascismo!", empunhava uma senhora velhinha. - "Dou explicações de História", oferecia outra, sentada numa cadeira de rodas. - "AfD: Para se informar sobre os riscos e os efeitos secundários, leia um livro de História e pergunte aos seus avós" (este cartaz citava uma frase que se ouve sempre no fim da publicidade a medicamentos, "sobre os riscos e os efeitos secundários, leia a bula e pergunte ao seu médico ou ao seu farmacêutico") - "Branco puro devia ser apenas uma cor para pintar as paredes" - "Vive sempre de tal maneira que a AfD seja contra"


"a resistência está a crescer"





"ainda há luzes acesas na casa da família Hitler"



"a loucura tem método"
"será que vocês enlouqueceram todos?"
(penso que estes dois cartazes vierem do Teatro Schaubühne)


Aqui chegados, regresso ao essencial: nos tempos que correm, nenhum democrata pode ficar em casa em dia de eleições.


Post scriptum para as pessoas que dizem "ah e tal, eles chegam ao poder e ao fim de dois meses já toda a gente percebeu que são uns incapazes", transcrevo um discurso de Armin Laschet, da CDU:

"Alguns dizem 'Vá, a AfD não é o NSDAP. Não exagerem!' Pode haver quem diga 'Não há-de ser assim tão mau...' Foi o que pensaram as pessoas em 1933. Em Novembro de 1932, os nazis tinham perdido dois milhões de votos. Baixaram para 33%. (...) E então Hitler foi nomeado chanceler. Alguns disseram "bem, vamos nomeá-lo chanceler, em dois meses já estará a ganir, vai desmascarar-se, não tem hipótese". Hitler só tinha dois ministros: Frick, o do Interior; e Göring. Todos os outros ministros pertenciam a partidos democráticos.  E sabem o que aconteceu durante esses dois meses, até ao dia em que ele "estaria a ganir"? 
30 de Janeiro: nomeação de Hitler como chanceler
1 de Fevereiro: dissolução do Parlamento
3 de Fevereiro: Hitler afirma que quer "germanizar" a fundo, e conquistar "espaço vital" na Europa de Leste  
4 de Fevereiro: limitação da liberdade da imprensa e da liberdade de expressão
22 de Fevereiro: as forças paramilitares nazis SA e SS são consideradas polícias
27 de Fevereiro: incêndio do Reichstag 
5 de Março: eleições; os nazis continuam a não ter maioria absoluta
11 de Março: Goebbels nomeado ministro da Propaganda
22 de Março: início da construção do campo de concentração de Dachau
23 de Março: lei da Concessão de Plenos Poderes (que esvaziou o poder do Parlamento) - fim da Democracia na Alemanha. 
Em dois meses, destruíram tudo. É por isso que nenhum antidemocrata pode ocupar um lugar do Estado. Vão usar essa posição para se verem livres da Democracia. E nós não o vamos permitir!"



    

4 comentários:

@lbino disse...

Excelente! Obrigado.

bettips disse...

Bom LER e SABER! Obrigada a uma repórter sem-fronteiras e anti-fascista.
Um óptimo post, tem tudo.
Não que eu precise saber mas gosto de saber que outros sabem.
"Não passarão"!
Abraços do Porto

Lucy disse...

sim, votar, votar, votar...
Faz imenso medo ouvir dizer: "não vale a pena votar. São todos iguais"

Adoa Coelho disse...

Muito bom artigo!