Para o pessoal inscrito na Berlinale como eu, o dia começa cedo: às 7 da manhã é a hora a que abrem a bilheteira online para reservar os bilhetes de filmes que vão passar dois dias mais tarde. E tudo acontece demasiado depressa, porque há centenas de pessoas interessadas nos mesmos filmes.
Naquela primeira sessão de reservar bilhetes, a quarta-feira antes de começar a loucura a sério, eu estava prontíssima à frente do computador, com a minha lista de filmes, as prioridades já definidas, tudo a postos para arrancar. Tudo, excepto saber mexer-me bem no sistema...
Primeiro demorou demasiado tempo a ser a minha vez de entrar, depois fiz algumas asneiras, atrapalhei-me... e quando finalmente cheguei à loja online, quase todos os filmes que queria ver estavam esgotados. Olhava para aquela lista interminável onde já faltavam quase todos os que me interessavam. Em pé, ao meu lado, o Joachim olhava disfarçadamente para o relógio: tínhamos combinado que o levava ao aeroporto às 7:05, já caminhávamos para as 7:15, a auto-estrada ficava mais cheia de minuto para minuto. De modo que tive um ataque de "prantelhana", como o homem da anedota que não conseguia decidir-se sobre o nome da filha. Reservei Seven Winters in Teheran, o único dos remanescentes que queria muito ver, Joan Baez I am Noise (estava em dúvida, por imaginar que seria outra vez um documentário daqueles todos iguais sobre artistas famosos) e Matria (que me atraiu por ser galego).
Foram esses os meus filmes do primeiro dia da Berlinale, e se o festival tivesse acabado aí já me tinha valido a pena.
1. Seven Winters in Tehran, de Steffi Niederzoll
Um documentário feito a partir de dentro de Reyhaneh Jabbari - uma mulher iraniana que aos dezanove anos resistiu ao homem que a ia violar. Este acabou por morrer, e todo o sistema se uniu para acusar a mulher, única maneira de limpar a honra do homem. E digo "a partir de dentro" porque o filme usa textos que ela conseguiu passar para fora da prisão onde ficou sete anos. A vítima tem a palavra, e produz um documento notável sobre dignidade e consciência de si. Impressionou-me em particular a força e a coragem daquela jovem mulher apanhada na engrenagem de um sistema totalitário e altamente misógino, e a inteligência emocional que a mãe revela ao longo de todo o processo, particularmente nos contactos com os familiares da vítima, que têm o direito de desistir da execução da pena de morte.
Dilacerante. E absolutamente imperdível.
2. Joan Baez I am a noise, de Karen O’Connor, Miri Navasky, Maeve O’Boyle
Um documentário que vai ao cerne de Joan Baez. Honesto, transparente, surpreendente. A cantora e activista permitiu que as realizadoras entrassem no arquivo da família, onde estão todos os filmes, as cassetes, os diários, as cartas, as fotografias, as gravações de sessões de terapia psicológica. Tanta abertura só foi possível porque Joan Baez e Karen O’Connor são amigas de longa data.
Era o meu primeiro dia da Berlinale, ainda me faltavam vinte cafés para começar a carburar bem. De modo que entrei no Kino International e quase fiquei surpreendida por ver ali a Joan Baez a posar para os fotógrafos e logo a seguir, já no andar de cima, a beber um chazinho. Claro: première mundial do documentário. Como não me ocorrera antes que ela estaria ali, à distância de um sorriso?
Fiquei um bocadinho a cuscar o ambiente, e aquela mulher tão franzina e jovem nos seus 82 anos, e depois entrei na sala já muito cheia. Perguntei a uma senhora sentada na cadeira junto ao corredor se a do lado estava vazia. Olhámos uma para a outra: a senhora é do meu coro, uma das minhas pessoas favoritas! E a cadeira estava vazia, que sorte!
No final do filme a Joan Baez passou por nós a sorrir, em direcção ao palco, e ofereceu-nos uma bela Q&A cheia de humor. A realizadora a contar que começou a pensar no filme em 2016, porque algum dia a Joan Baez faria a última tournée, e ela a interromper, com música alegre na voz: "you never know..." (o público a estremecer de esperança, e ela a rir). O filme, que era suposto ser sobre a carreira, mas virou para outra dimensão quando Joan Baez deixou as realizadoras entrar na divisão onde guardam os arquivos da família. E foi-se fazendo à medida das descobertas e das conversas, cheias de confiança, entre as amigas Joan Baez e Karen O'Connor. Alguém do público perguntou se ela ainda tinha a casa na árvore. "Sim, tenho. E sim, dei uma queda quando estava a subir pela escada de mão. E sim, parti a bacia. But it's all right." (eu a pensar que isso explica aquela sua forma cuidadosa de andar). Perguntaram que canção estava a dançar na última cena do filme. "A que a produção me deu para dançar. Mas eu sou mais Gipsy Kings". Perguntaram como teria sido a vida dela se não se tivesse tornado tão famosa tão cedo. "Não sei. Foi esta a vida que me foi dado viver - and I'm not complaining". Ninguém lhe perguntou pelo Bob Dylan (aleluia!).
E no fim, Joan Baez agarrou no microfone e cantou a capella para nós:
Ain't
gonna let nobody, turn me around
Turn me
around, turn me around
Ain't
gonna let nobody, turn me around
Keep on
a walking, keep on a talking
Gonna
build a brand new world
Matria é a primeira longa de ficção de Álvaro Gago, falado em galego, e começou a germinar quando a avó deste morreu, a família contratou Francisca para cuidar do avô, agora viúvo, e a casa se encheu de vida. Ao querer mostrar-nos Francisca, Álvaro Gago acabou a fazer uma homenagem a todas essas mulheres cheias de força e dignidade, que não desistem apesar das muitas pancadas que a vida lhes dá. Ao falar para o público, o realizador emocionou-se: "Este filme é dedicado a uma mulher a quem disseram que não valia nada - Francis, tu tens muito valor!"
Francisca não estava presente, mas a sua energia encheu a sala. E a actriz que a representou contou que a mera representação da vida dela fora um esforço físico esgotante.
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