05 outubro 2022

"fragmento"


Quando o muro caiu, o Joachim e eu vivíamos no sul da Alemanha, mas nessa altura ele tinha frequentemente trabalhos em Berlim - e aproveitou para andar de picareta na mão a ajudar à festa. O maior #fragmento que conseguiu fazer, deu-mo a mim. Guardei-o com cuidado, pois claro: 236 g de História, e uma declaração de amor.

Dezoito anos depois fomos viver para a capital alemã, e calhou de a vizinha do segundo andar mudar para um apartamento muito mais pequeno, e ser obrigada a desfazer-se da maior parte das coisas que tinha. Nomeadamente: dois pedaços enormes do muro que ela própria tinha arrancado nos intervalos do almoço. Em 1989 trabalhava na Bayer, muito perto da fronteira, e tinha vivido dias de surpresa e euforia: a cantina aberta nesse primeiro fim-de-semana de Novembro, oferecendo refeições a toda a gente que vinha de Berlim Oriental, as conversas à mesa com tantos desconhecidos-amigos, os piquetes de colegas a destruir alegremente o muro...

E ali estava ela, agora, no seu apartamento já meio esvaziado, a dar-me dois pedaços da História que atravessara a sua vida e ela ajudara a fazer, literalmente, com as suas próprias mãos.

Gosto de os ter cá em casa, é certo, mas provocam-me sempre uma certa tristeza: eu, que acumulo compulsivamente objectos com histórias (desde as etiquetas na mala de navio que acompanhava a avó do Joachim quando ia visitar a sua irmã na África do Sul ao tapete de uma tia avó que fazia uns almoços de natal fantásticos), convivo mal com este gesto de libertar em vida objectos tão entrançados com ela. Bem mais do que simples coisas, são, de certo modo, fragmentos de nós próprios.

E mais me dói ver nas lojas de velharias os despojos de vidas alheias: objectos órfãos de quem lhes dava significado.


2 comentários:

Isabel disse...

Também sou uma acumuladora. Guardo tudo, e de vez em quando surpreendo alguém da família com um objecto ou desenho, ou foto ou papel...que julgava desaparecido.
Também me faz confusão que as pessoas se desfaçam das coisas que se vêem em feiras de velharias/antiguidades (e que ,por vezes, gosto de comprar).
Cada objecto tem uma história.

Mas a verdade é que um dia a maior parte das minhas coisas vai certamente ter o mesmo destino...

Continuação de boa semana:))

Helena Araújo disse...

A gente sabe lá que histórias há por trás desses abandonos...
Quantas coisas roubadas? Quanta necessidade? Quantas pessoas que morrem sem descendentes nem família?

Obrigada! Boa semana também.