10 junho 2022

somos todos Simão de Cirene

 

A lei da eutanásia voltou ao Parlamento português, e com ela um escândalo, um autêntico sobressalto social: a provocação ao princípio da inviolabilidade da vida humana, que nos interpela como sociedade e nos obrigará a tomar medidas concretas para evitar tragédias.

Sem esta lei, a defesa daquele princípio tem sido feita de maneira prática e barata: as pessoas estão "condenadas a viver", queiram ou não queiram. Estão em situação de sofrimento insuportável? Paciência. Cada um tem de carregar a sua cruz, é assim desde o princípio dos séculos, é a vida.

Mas, uma vez aprovada a lei da eutanásia, a defesa da vida humana implicará o trabalho quotidiano e exigente de fazer com que as pessoas em situação de grande sofrimento queiram continuar vivas, apesar de terem a possibilidade de receber ajuda para antecipar a sua própria morte. Esta alternativa, sendo muito mais digna e humana, é muito menos prática e barata que a simples proibição da eutanásia. Implica muito empenhamento e muito esforço. Implica o envolvimento da rede familiar e social, exige o investimento do Estado nos apoios necessários a cada doente e nos cuidados paliativos, impõe um estado de alerta colectivo para sensibilizar as pessoas (sim, o famoso politicamente correcto também passa por aqui: pelo repúdio de expressões como "peste grisalha", pela atenção aos termos em que se fazem as propostas de reduzir os "custos incomportáveis do SNS").

Se pensarmos no risco do "plano inclinado", a responsabilidade é ainda maior. Teremos de ser capazes de construir uma sociedade onde todas as pessoas se sintam bem-vindas e estimadas: desde logo, os velhos e as pessoas com graves problemas de saúde (que correm riscos sérios de se sentirem compelidos a pedir a eutanásia para não serem um "peso morto" na família e na sociedade), e também, entre outros, as pessoas com depressão profunda, ou as vítimas de bullying generalizado e quase inconsciente devido à sua orientação sexual ou identidade de género.

Traduzido em termos evangélicos: uma lei da eutanásia obriga-nos a tomar consciência da nossa responsabilidade como Simão de Cirene, da nossa obrigação de ajudar a carregar a cruz daqueles que o destino ou a insensibilidade social condenaram ao sofrimento. Numa sociedade que permita alijar a cruz, os defensores do princípio da inviolabilidade da vida humana terão de estar muito atentos aos que sofrem, dando-lhes a certeza de que nunca carregarão a sua cruz sozinhos, fazendo o que está ao seu alcance para reduzir o peso desta.

É fácil ir para a rua ou para os jornais protestar contra a aprovação desta lei. Muito mais difícil é ser Simão de Cirene todos os dias - a nível pessoal e a nível institucional. Mas é essa a prova dos nove que permite às pessoas e à sociedade no seu conjunto mostrarem que acreditam realmente no princípio da defesa da vida humana.


8 comentários:

Jaime Santos disse...

A modos que, o que há assim de tão errado em querer-se morrer? O genro de Marx, Paul Lafargue, que escreveu um panfleto delicioso, 'O Direito à Preguiça' em que criticava capitalistas e socialistas pela sua obsessão com a produção (com os resultados que hoje conhecemos) acabou por fazer um pacto de suicídio com a sua esposa, Laura Marx. Escreveu:

'Estando são de corpo e espírito, deixo a vida antes que a velhice imperdoável me arrebate, um após outro, os prazeres e as alegrias da existência e que me despoje também das forças físicas e intelectuais; antes que paralise a minha energia, que quebre a minha vontade e que me converta numa carga para mim e para os demais. Há anos que prometi a mim mesmo não ultrapassar os setenta; por isso, escolho este momento para me despedir da vida, preparando para a execução da minha decisão uma injeção hipodérmica com ácido cianídrico. Morro com a alegria suprema de ter a certeza que, num futuro próximo, triunfará a causa pela qual lutei, durante 45 anos. Viva o comunismo! Viva o socialismo internacional!'

(da Wikipedia)

Cansaram-se da vida, presumo...

Que coragem! E ainda teve a sorte de não ver o seu sonho transformar-se em pesadelo...

O sofrimento de Cristo parece ao menos ter um sentido, agonia em grego quer dizer combate. Morrer aos bocados já não me parece fazer sentido nenhum.

Sérgio disse...

Olá,
acompanho o blog mas nunca comentei, por muitas vezes adorei o que li mas esta preguiça... mas hoje tinha mesmo de agradecer a partilha. Obrigado

Sérgio

conversas várias disse...
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Helena Araújo disse...

Jaime,
O problema de "querer morrer" é que - passe a lapalissade - é uma questão de vida ou de morte. Quando deixamos de ver aí um problema, aquela expressão esvazia-se...
Sei algumas das circunstâncias em que não quero viver.
Mas temo que quando entrarmos numa de "que mal tem morrer?" empurremos um pouco mais na direcção da morte aqueles que mais precisam da nossa ajuda para terem motivos para se agarrarem à vida.
Sou a favor do direito à eutanásia. Mas esse direito não pode vir acompanhado de um comodista encolher de ombros das pessoas e da sociedade à volta daquele que está em sofrimento.
A posição clara da sociedade deve ser sempre esta: "ideia de antecipares a tua morte provoca-me choque e repulsa - que posso fazer para que tu prefiras continuar vivo?"

Helena Araújo disse...

Sérgio,
obrigada.

Helena Araújo disse...

Caso alguém estranhe ter tantos comentários apagados: era eu, que troquei as minhas próprias identidades, a tentar acertar e responder. :)