22 abril 2022

memórias da guerra

 

"Hoje nós, amanhã vocês"


Falei há dias das duas alemãs octogenárias a quem as imagens da guerra na Ucrânia trazem à tona memórias do que viveram em 1945. 

Rimo-nos com a história do pai obrigado a tocar "noite feliz" na Páscoa. Mas perguntavam também, apreensivas: esse exército não aprendeu nada em todos estes anos? Continuam igualmente brutais? Preferiram falar apenas do anedótico: alguns soldados do Exército Vermelho que chegaram a Berlim bebiam da água das sanitas, por não saberem o que era aquilo. 

Pensei numa passagem de um diário dessa época escrito em Berlim: os soldados soviéticos que tentavam aprender a andar de bicicleta nas ruas bombardeadas. Num instante a bicicleta ficava toda estragada. Eles deitavam essa fora, e roubavam mais uma para continuar a treinar.

Mas isso era o lado quase anedótico da ocupação. Bem pior que o saque generalizado, foram as violações e as execuções sumárias. A vertigem do poder sem freios.  

Em Weimar, conheci uma polaca que era peremptória: comparados com os soldados do Exército Vermelho, os soldados alemães eram uns cavalheiros, dizia ela. Nem mesmo o meu argumento da lista que os nazis levaram para a invasão da Polónia, com os nomes de milhares de pessoas a abater, a demoveu: o verdadeiro horror chegou com o Exército Vermelho.
Fico a pensar que crimes terão sido esses, que fizeram dos SS alemães "uns cavalheiros".
E mais me assusta a pergunta das minhas amigas: será que não mudaram, em todos estes anos? 

A minha sogra contou que tem andado a dormir mal. As notícias da Ucrânia trazem às noites dela memórias do tempo em que era uma criança, e se abrigava na cave do prédio, ouvindo as bombas cair à sua volta. Oitenta anos depois, descobre que esse pesadelo esteve sempre com ela. 

Ontem enviaram para o meu coro um apelo para encontrar uma família de acolhimento para um miúdo de 12 anos. Veio para Berlim com a irmã, os pais ficaram na Ucrânia. Os dois decidiram que é melhor separarem-se, porque a irmã está profundamente traumatizada, e o rapazinho não consegue lidar com isso. 

Daqui a setenta anos, ainda vão carregar com eles este pesadelo. Eles, e milhões de outras crianças ucranianas, por causa de um Putin que se dizia muito preocupado com os - entre novecentos e cinco mil - homens do batalhão Azov. Era preciso desnazificar a Ucrânia, dizia o Putin, pelo que enviou para lá os seus próprios paramilitares nazis. Como era mesmo a famosa frase? "São uns filhos da puta, mas são os nossos filhos da puta".

Como os tempos são outros, muito do que os soldados e paramilitares russos roubam tem chips que indicam o seu paradeiro. Há máquinas agrícolas ucranianas que agora estão na Tchetchénia.
O que me lembra a cobiça estampada no rosto dos "alemães de bem" que, na primeira metade dos anos 40 do século passado, frequentavam as vendas do recheio das casas dos judeus enviados para os campos de concentração. 

E penso nesta afirmação de Jonathan Littell:

War leads to crime, to the abandonment of the usual norms, to incredible brutality and sadism. But it's always collective violence, the madness of a group as a whole, not the insanity of one individual such as Anders Breivik in Norway. There's always a system at work behind the killing, an administrative organization of death.

É o que Putin decidiu infligir à Ucrânia, como antes decidiu infligir à Tchetchenia, à Geórgia, à Síria. Uma autêntica pombinha da paz. 
(Mas ainda há quem prefira entender que o verdadeiro problema é o Zelenski...)





Fotos de uma manifestação em Berlim em 13.3.2022.
Por demasiado chocante, tudo!, não incluí a do miúdo com um cartaz a dizer: "a minha família quer viver". Mas é comodismo meu: o que me custa tanto a ver e a mostrar é algo que vai ficar com ele para sempre.  


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