O que ainda nos faltava saber sobre Dostoiévski - e mais algumas informações avulsas sobre a RDA e a Rússiao, por Wladimir Kaminer, como não podia deixar de ser.
Veio numa entrevista de cerca de 30 minutos, que se pode ver (em alemão, e só até Novembro deste ano) na Mediateca da ARD.
(Se me souberem ensinar como pôr as legendas portuguesas noutra cor, para ser mais fácil de distinguir das alemãs, também agradecia) Outras passagens da entrevista completa:
[ 3'19 ] - Há quanto tempo não vais à Rússia? - Desde 2014. Desde a anexação da Crimeia. - E não podes voltar? (*) - Posso! Penso que qualquer pessoa pode. Há imeeeeeeeenso espaço na Sibéria. (*) A resposta é: não. Porque andou por aí a dizer abertamente o que pensa sobre o Putin.
[ 4'48 ] - A URSS foi uma experiência gigantesca. - Que não funcionou. - Experiência. "Não funcionar" já faz parte do conceito. Mas era o nome que eles lhe davam, entendes? Não tinham qualquer vergonha de usar o nome "experiência". Na língua oficial chamava-se "a grande experiência socialista". E nós éramos os ratos de laboratório. Somos pessoas sem rumo. Sacudiram-nos para fora das provetas, porque o chefe do laboratório perdeu o entusiasmo. Ainda está em aberto. O resultado da experiência ainda está em aberto.
[ 6'08 ] - [No ano do meu nascimento, 1967] os russos deram muitas voltas no universo, foram 30 ou 40 vezes, e ao mesmo tempo em terra não havia manteiga. E não havia calças. Economia planificada, e poucas calças. Num ano produziram muitas calças, noutro ano produziram poucas. As calças eram sempre um grande problema, porque cada cidadão precisa... - De calças. - ...de um tamanho diferente. Eles planeiam calças de um tamanho específico, mas os cidadãos não engordam ou não emagrecem de modo a caber nas calças. Que é que fazes? Deitas as calças ao lixo? Fazes outras? Era uma coisa do diabo. (...) Já na altura havia vozes críticas, que diziam que talvez fosse melhor não irmos tantas vezes para o universo, para as estrelas... - E em vez disso, produzir calças. - Sim, fazer calças com esse dinheiro.
[ 9'21 ]
- Todas as pessoas que conheço, os meus amigos e vizinhos que nasceram na antiga RDA, dizem que no fundo gostavam da RDA, sentiam-se protegidos. A única coisa de que não gostavam era daquele dinheiro, por ter uma aparência tão estranha. Em especial as moedas, aqueles chips de alumínio. Parecia dinheiro de casino, de um monopoly. Dinheiro de brincar, sem seriedade nenhuma. E com esse desejo foram para a rua... - Queriam dinheiro sério? - Sim, dinheiro ocidental. - Pensava que queriam liberdade! - Queriam poder fazer compras com dinheiro ocidental. Todo o resto podia ficar como estava. Liberdade é bom, mas justiça social, segurança no trabalho, essas coisas, e que não tens de fazer nada porque outros decidem tudo por ti, a educação era melhor, havia quem cuidasse das crianças até tarde para os pais poderem trabalhar... - Mas então, por que motivo fizeram a revolução? - Eles não fizeram nenhuma revolução. Só queriam dinheiro ocidental. Agora, ouve com atenção: andei a pesquisar, para ver o que aconteceu a esse dinheiro do Leste. Quando cheguei à Alemanha (...) havia dinheiro em todos os caixotes de lixo da estação de comboio de Lichtenberg. Só agora, trinta anos depois, fiquei a saber porquê. Foi poucos dias depois da mudança de moeda, e ainda não tinham esvaziado os caixotes de lixo. As pessoas tinham deitado fora os trocos. (...) [ 11'03 ] Perguntei-me: o que aconteceu ao dinheiro do Leste? Não vais acreditar. Michel, é uma história completamente louca. Comeram-no. - O quê? - A sério. Estas moedas de alumínio foram fundidas em barras, e vendidas pela Treuhand às empresas que precisavam de sais de alumínio: de cosmética, farmacêuticas... as pastilhas da azia são feitas com sais de alumínio. Batons, pasta dos dentes, desodorizantes... os alemães de Leste queriam deixar uma boa impressão quando iam à procura de trabalho, e de certeza que também tinham azia, e assim. [ 11'45 ] O antigo dinheiro deles: comeram-no!
[ 26'01 ]
- Achas que algum dia vais regressar à Rússia?
- "Regressar" não é possível.
- Porque não?
- Esta história não tem marcha-atrás. Viajamos dentro de um comboio que não é nosso, numa direcção desconhecida. Não há marcha-atrás, e também não há uma Rússia da qual eu saí. Agora é um país novo. O país que eu não conheço.
- Isso é verdade. Mas eu estive há pouco no Irão, e também não é o país que eu conheço, mas foi muito bom. Da Rússia, de que sentes mais falta?
- Trago tudo comigo.
- Sim, mas... vou-te dar um exemplo. Sinto falta de passear numa rua à noite, às onze, à meia-noite. Ainda está quente, todas as pessoas estão na rua, e come-se fígado e rins grelhados, em cima do pão, com um pouco de manjericão. Quando estava lá...
- Que fígados e os rins?
- De ovelha.
- A sério? Há disso lá? Deixa-nos ir juntos a Teerão.
- Quando lá estava, disseram-me que agora se pode comer muito bem em Teerão, têm sushi, têm pizza, mas a minha tia disse que eu tinha tudo isso na Alemanha, e queria comida iraniana. Saímos para a rua, fomos a uma barraquinha, e estava lá um homem que pegou no pão quente e nos espetos, e eu pedi dois de rins, dois de fígado, um de coração... pequenos espetos, um pouco de sal por cima...
- Isso parece uma maravilha. Mas na Rússia não podias fazer. Nunca tens a certeza de que não estás a comer os rins do teu vizinho.
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