No dia 23 de Fevereiro, o primeiro reflexo foi de medo: no discurso imperialista de Putin tudo indica que a Ucrânia é um início. Depois será a vez dos Estados bálticos - um ataque à União Europeia.
E nós, que faremos?
Subitamente, viver em Berlim torna-se inquietante: se Putin decidir lançar uma bomba atómica, qual seria a cidade mais simbólica para o fazer?
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Tenho um casal de vizinhos que são ele russo e ela ucraniana. Disseram-mo - com um sorriso, como quem encolhe os ombros - em 2014, quando Putin invadiu a Crimeia.
Nem sei que lhes dizer agora.
Acredito que haja muitos casos desses - e que permitam criar espaços de "micro-paz", à revelia das ordens de Putin.
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A Crimeia foi um teste: "deixa cá ver como é que eles reagem, e até onde me deixam ir..."
Déjà-vu: a estratégia e a argumentação na invasão da Crimeia e nesta segunda invasão da Ucrânia parecem fotocópias da estratégia de Hitler para se apoderar da Checoslováquia: "temos de proteger os nossos que lá vivem".
Também então os países ocidentais assobiaram para o lado. Com o resultado que se viu.
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Sinto vergonha de uma piada que fiz há menos de duas semanas sobre a invasão da Ucrânia estar com um bocadinho de atraso. Éramos tão novos e inexperientes até ao dia 23 de Fevereiro de 2022...
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A primeira reacção dos políticos alemães foi de surpresa e incredulidade. "Putin mentiu", dizem eles. Mentiu descaradamente.
A posteriori, é fácil dizer que era de prever. Mas, enquanto a invasão não tinha acontecido, enquanto ainda tentavam a via diplomática e a pressão dos embargos, enquanto eu fazia piadinhas sobre o atraso na invasão: qual é o momento certo para declarar liminarmente que o presidente de outro país é um pária com quem não vale a pena falar e em quem não se pode acreditar?
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Sinto embaraço pelo papel hesitante da Alemanha nos primeiros dias da guerra. Demora demasiado tempo a conseguir que todos concordem tomar determinada medida.
É um sinal de alerta: tenho de estar atenta para não deixar que um ditador russo me leve a desejar democracias "mais agilizadas" na Europa.
Mas agora estão avisados. Já sabem que estas coisas podem acontecer. Convinha que de futuro se pusessem de acordo com a devida antecedência no que diz respeito às medidas a tomar imediatamente após um atentado à ordem internacional como este. Se um país invade outro, a reacção - dura e sem margem para dúvidas - tem de ser imediata.
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Na Alemanha critica-se o desinvestimento nas forças armadas a que se assistiu nas últimas décadas. Como é possível fazer voz grossa ao Putin quando se tem as forças militares num estado lastimoso?
Mas também: em que deve um país investir os seus recursos que não são infinitos? A velha questão: o arado ou a espada? De onde virão os cem mil milhões que decidiram agora gastar para melhorar a capacidade militar alemã? Onde vão faltar? Nas escolas, nas pontes das auto-estradas, na reconversão energética?
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Uma amiga passa-me esta canção.
Penso na frase: "imagina que é guerra, e não comparece ninguém".
Penso na canção "Imagine".
Penso na palavra de ordem das manifestações nos anos oitenta, na crise dos euromísseis: "better red than dead". Era uma alteração à anterior, "better dead than red" que os alemães diziam durante a segunda guerra mundial. Andamos em círculos?
Penso no discurso de "sangue, suor e lágrimas": será que hoje teria a mesma adesão na nossa Europa confortável?
Que sacrifício seria eu capaz de fazer pelo meu país?
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Mulheres e crianças podem abandonar a Ucrânia. Os homens têm de ficar.
Não é o momento certo para isso, mas uma interrogação vem ter comigo: então e a igualdade?
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Os homens têm de ficar. Algo em mim se revolta contra esta imposição de arriscar a vida para defender o seu país. Heróis (quantos deles mártires?) à força.
David contra Golias - quantos deles saberão usar a funda?
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Admiro profundamente a coragem dos soldados ucranianos, e mais ainda a dos civis que decidem - em liberdade - defender o seu país da melhor maneira que podem. Devemos imenso a estes homens intrépidos. Quanto mais a Ucrânia resistir e humilhar o exército russo, menos provável é que a aventura imperialista de Putin se alargue a outros países - nomeadamente da União Europeia. Portanto, menos provável é (caso haja alguma lógica racional na cabeça do ditador) que a guerra alastre na minha direcção. Sem preparação nem armas adequadas, esses homens lutam para defender o seu país - e os nossos.
Admiro profundamente a coragem daqueles que na Rússia se manifestam contra a guerra. Sabem que vão ser presos e sujeitos a terríveis sofrimentos, mas o seu sentido de decência fala mais alto.
Uns e outros fazem-me sentir de certo modo cobarde e parasita. Eu, que em caso de guerra teria vontade de pôr os meus filhos do outro lado do planeta, beneficio da coragem desesperada desses que, como eu, só queriam viver em paz - mas permanecem e lutam.
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Um detalhe inteligente no discurso dos políticos alemães: esta é a guerra do Putin. Não é a Rússia, não são os russos.
Pobres russos: há quantos anos não têm eleições livres e limpas? Há quanto tempo estão dominados por ditadores que perseguem, prendem e matam todos aqueles que se lhes opõem?
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Em tantas cidades da Ucrânia: civis abrigados em estações de metro. Imagens de famílias no momento da separação. Habitações destruídas. De partir o coração.
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Há alemães a organizar transportes (alimentos, roupas, fraldas, artigos de higiene íntima) para a Ucrânia. No regresso, trazem os camiões cheios de pessoas. Uma empresa de Berlim alugou vans e foi à fronteira buscar ucranianos. Escreveram numa placa de cartão, em ucraniano: "Berlim - transporte gratuito". Os comboios alemães também são gratuitos para os refugiados.
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No twitter leio que alguém pede conselho sobre quais são os melhores sites para se informar sobre o que está a acontecer na Ucrânia. Diz que não confia nos jornalistas.
Fico com vontade de informar que todos os ucranianos puseram barretes de alumínio, e que está a resultar lindamente.
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Dou comigo a ter vontade de dizer muitas coisas inenarráveis. Não digo. Mas dentro de mim vejo como é fina a camada de verniz que parece civilização.
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Hoje cruzei-me com um vizinho que também andava a passear o cão. Estava com um ar preocupadíssimo, perguntou-me que tal me está a correr a última semana de vida.
Ontem esteve na manifestação dos cem mil em Berlim. Estava junto à Coluna da Vitória, via a multidão para um lado até à Porta de Brandeburgo, e para o outro até à ponte da S-Bahn.
Ainda se sentia emocionado com o minuto de silêncio que fizeram em conjunto.
Depois acrescentou: quando era novo fiz objecção de consciência. Se fosse hoje, não fazia.
Isto já não é a cena dos Sudetas e da Checoslováquia. Isto é o 1 de Setembro de 1939.
E foi-se embora de cabeça baixa.
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Os meus filhos estão em Portugal. Já me passou pela cabeça dizer-lhe que se mantenham por lá.
Mas em vez de organizar os papéis para lhes facilitar as burocracias caso aconteça aqui uma desgraça, continuo a trabalhar na tradução de um livro que tenho de entregar em meados de Março.
Não acredito que esse fim do mundo me vai acontecer a mim.
Mas acontece a cada um daqueles que está a morrer nesta guerra.
E também para os que estão a morrer na tragédia do Afeganistão. Sim, essa não deixou de existir, apenas saiu do nosso radar.
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Na televisão entrevistam uma ucraniana em Kyiv. Está exausta, e por isso decidiu dormir no corredor do seu apartamento, em vez de ir para o bunker. Diz que proibiram a venda de álcool, porque este é o momento de terem todos a cabeça fria.
Perguntam-lhe se tem medo.
- Claro! Mas temos o humor. Escrevemos uns aos outros a contar piadas para nos animarmos mutuamente. E depois, temos o país dos nossos filhos para defender. Isso é mais importante que o medo.
12 comentários:
Retalhos dos pensamentos de uma luso-alemā, ou de uma portuguesa a viver na Alemanha.
Gostei de ler.
Momentos tristes que vivemos. Mas "O que é bonito neste mundo e anima é ver" a solidariedade que se manifesta por tantos modos
Fico imaginando que efeito teria tido a visita de Bolsonaro a Putin. Poucos dias antes da invasão, ele recebe um líder ocidental de um grande país. Posso garantir que ficamos todos apavorados do que poderia acontecer nesse encontro. O Itamaraty - leia-se, responsáveis pela política externa brasileira - preparou o presidente, fez recomendações, mostrou que o foco teria que ser sobre pautas amenas, como importação de insumos para adubagem da nossa próxima safra, especificamente o potássio e outros itens. Ao final do encontro, Bolsonaro deixa escapar um "somos solidários ao senhor". Sério?
oOo
Putin aparentemente estava decidindo o que fazer. Por um curto tempo, o mundo até acreditou que ele havia desistido de invadir a Ucrânia. No Brasil, a indústria das fake news produziu imagens de Bolsonaro como um grande indutor da paz, candidato até a um prêmio Nobel....
oOo
Será que aquela solidariedade vinda de um país tão periférico teria aumentado a percepção de Putin que ele poderia ir em frente, e que tudo daria certo?
oOo
Não é fácil ser brasileiro sob o governo atual. Vamos ter um ano difícil até as eleições. Será uma guerra de versões, mentiras, memes, propaganda, desinformação.
oOo
Posso estar errado, mas acredito que se o povo alemão for convocado a resistir, irá passar frio, diminuir o uso de energia, viver com menos, fazer os sacrifícios que se impõem para vencer a luta contra o Putin.
E quanto a Gerhard Schröder, alguma manifestação?
Obrigado, Helena, pelos teus registos. Com muitos deles me identifiquei.
Hoje li o poema da Sofia 'Paz sem vencedores e sem vencidos' e dei-me conta de que quem hoje defende a paz, sem mais, defende objetivamente a paz dos vencedores, ou seja, defende uma paz sem justiça...que pode ser a paz dos cemitérios.
Bom dia Helena,
Gostei do seu texto. No entanto, uma análise mais racional teria de objetivar que as contradições e os excessos estão dos dois lados. No tempo atua, teremos de condenar a guerra como estratégia última da política, como meio inqualificável em qualquer circunstância...
Teremos de ler a História desde Bonaparte, passando por Hitler, até à reunificação alemã e as condições que a URSS (na altura) colocou para aceitar essa reunificação...
Vemos que um determinado compromisso não foi aceite (política agressiva sempre soube rasgar compromissos) e a Nato (leia-se EUA, ou seja, já não é Napoleão ou Hitler) começou a aproximar-se perigosamente da Rússia e a aparecerem bases militares dos EUA a poucos quilometro da Russia.
Criou-se um caldo que nos trouxe até mais uma guerra (mais uma vez, quase fraticida)!
Julio Ricardo
Lucy, que seria de nós sem a solidariedade!
Ruben,
os choques vêm e vão - entretanto, já nada me espanta em Bolsonaro. Mas acredito que quem vive no país que ele domina, maltrata e envergonha todos os dias viva tudo isso de uma forma muito mais dolorosa.
Já a tua fé nos alemães, desculpa que te diga: infelizmente, estão a falhar redondamente numa coisa. Continuam a importar energia à Rússia. "Porque as avozinhas alemãs não podem ter frio".
Assim não dá.
Isto é de uma cobardia atroz.
Manuel Pinto,
obrigada. Temo que seja ainda pior: a paz dos vencedores não resolve o problema, apenas lhe dá tempo para se tornar ainda maior. Que garantias temos que a Ucrânia é a última, e não apenas a primeira invasão?
O discurso do Putin antes de invadir a Ucrânia está longe de dar essa garantia. Pelo contrário.
Julio Ricardo,
o que me pergunto cada vez mais é com que direito a URSS e as potências ocidentais podiam pôr e dispor de outros países. Isso não é imperialismo puro e duro?
O que o leva a si a aceitar que um país não pode pertencer à NATO, se o quiser, porque a sua função é servir de zona de segurança para a Rússia?
O comportamento imperialista dos EUA é um facto indiscutível. Mas não nos cabe a nós negar aos ucranianos o direito de decidir por qual império querem ser usados. E percebo facilmente que os ucranianos, depois de verem o que Putin fez na Tchetchenia e na Geórgia, quisessem aderir rapidamente à NATO, para não acontecer o mesmo ao seu país.
Parabéns Helena por o que ando a ler neste seu blogue que hoje descobri, gostei e vou seguir. Obrigada pelas suas reflexões.
Obrigada, Méri.
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