11 setembro 2021

um outro olhar sobre o 11 de Setembro

 


 "Atrás de cada esquina espreitam várias direcções." 
Stanisław Jerzy Lec


À distância de vinte anos, destaca-se com nitidez o momento mais especial do meu 11.9.2001. Aconteceu a meio da tarde, quando fui buscar os miúdos à escola, em San Francisco, e li no "diário da escola" a frase que a directora deixara aos pais:

For the sake of the future and the peace, please tell your children how is the life of the Palestinian people. We must walk in their moccasins to understand. 

Eu tinha passado o dia em frente à televisão, tomada por um sentimento de incredulidade. Sentia-me atordoada pelas imagens do dia, e em particular pela sequência que tinham passado repetidamente na tv: primeiro o casal que saltou de mãos dadas da torre em chamas, depois um grupo de palestinianos a aplaudir. Em contrapartida, os meus filhos passaram esse dia com uma mulher que fazia questão de recusar a lógica simplista do ódio.   

O segundo momento mais valioso desses dias de estupefacção e medo foi quando soube que na Bay Area havia grupos de cristãos que se ofereciam para servir de escudo humano em mesquitas e outros locais de encontro de muçulmanos, para os protegerem de pessoas enfurecidas e violentas que estavam dominadas por uma necessidade urgente de vingança. 

"Atrás de cada esquina espreitam várias direcções": no próprio dia em que os EUA foram vítimas de um ataque terrível, bárbaro e espectacularmente humilhante, houve pessoas que escolheram o caminho de construção da paz - e são essas pessoas que lembro vinte anos depois com enorme gratidão. 

O governo norte-americano escolheu a direcção oposta. O gigante ferido no seu amor-próprio, desnorteado, cego de dor e - sobretudo - de humilhação, tentava encontrar um inimigo plausível para poder mostrar ao mundo que ainda tinha músculos. Ao fim de algumas semanas, decidiram-se pelo Afeganistão - embora o ataque tenha sido preparado em Hamburgo e na Florida, e não houvesse um único afegão naquele grupo de terroristas. A guerra começou como uma retaliação e um esforço para acabar com os campos de treino de terroristas, mas em breve mudariam a narrativa: afinal, tratava-se de levar a democracia e os direitos humanos ao Afeganistão. O mundo comoveu-se com as fotografias das mulheres de Kabul finalmente livres da burca, do soldado americano que abraçava um bebé afegão, das crianças que lançavam papagaios de papel no céu da capital: a máquina da propaganda a funcionar com toda a eficiência. E pouco importava que, para "levar os direitos humanos ao Afeganistão", só nos primeiros dois anos da guerra as acções militares tivessem causado mais vítimas civis que os ataques do 11 de Setembro. Muitas mais se seguiriam: estima-se que quase 50.000 civis tenham morrido como vítimas de bombardeamentos e armas de fogo, e várias centenas de milhares como vítimas indirectas desta guerra.  

Com o Afeganistão mais ou menos dominado, a empresa da guerra norte-americana virou-se para o Iraque. Ficaram famosas as visitas do Dick Cheney à sede da CIA para pressionar os agentes a trabalhar com mais afinco de modo a fornecer as provas necessárias para justificar a invasão desse país. Também deu muito que falar o caso da espia Valerie Plame, traída por um dos homens do presidente Bush, o que foi interpretado como um acto de vingança contra o seu marido, que ousara negar que o Iraque tivesse comprado urânio no Níger, deitando por terra um dos argumentos  mais importantes entre os inventados para justificar a invasão. 

Por essa altura, o aproveitamento indecente das vítimas do 11 de Setembro já há muito se tornara uma banalidade. As caixas de correio electrónico pipocavam de mails a lembrar o casal que saltara de mãos dadas para o abismo no WTC:  em memória deles era imperioso bombardear Bagdad.

Pouco depois da invasão do Iraque, os escândalos começaram a suceder-se: as imagens indecorosas da prisão e da execução de Saddam Hussein, a tortura e o sadismo desenfreados em Abu Ghraib, as revelações wikileaks (lembram-se daquele filme no qual soldados norte-americanos disparam sobre civis?), o comandante alemão que cometeu um erro de análise e encomendou um bombardeamento aos norte-americanos, que teve como consequência a morte de 90 civis afegãos, o presidente Karzai a implorar repetidamente aos ocupantes ocidentais que parassem de matar civis, que parassem de matar crianças... 
  




 

Em 2010, o resultado da direcção que o governo norte-americano escolheu tomar após o 11 de Setembro era este: até à data, o número de soldados norte-americanos mortos já ultrapassava o de vítimas dos ataques em 2001; por cada civil morto no 11 de Setembro, mais de 300 civis afegãos e iraquianos tinham perdido a vida. A despudorada assimetria da violência já se sentia assim em 2010, e o pior estava ainda para vir: a ocupação do Afeganistão continuaria ainda por uma década, o daesh começaria em breve a semear o terror a partir de um Iraque desestabilizado pela invasão, a tragédia síria iria provocar milhões de refugiados. Uma pequena parte destes conseguiria fazer o difícil caminho até à Europa, o que acabaria por ter repercussões no panorama político europeu, com o aproveitamento oportunista que permitiu o regresso da extrema-direita aos parlamentos.

"Atrás de cada esquina espreitam várias direcções", e após  11 de Setembro de 2001 os EUA escolheram a pior imaginável.

Vinte anos depois do 11 de Setembro: continuo a sentir o terror e o choque pela morte daquelas 2.977 pessoas, e comovo-me sempre com os relatos das tragédias pessoais. Ainda ontem, num documentário alemão, chorei com a mulher com sotaque do sul da Alemanha que contava que o marido morreu num dos aviões de NY, na véspera da entrada da filha de 2 anos no infantário, onde lhe estavam a preparar uma festinha de boas-vindas. Foi falar com as educadoras, disse-lhes: "se eu me estou a controlar para a miúda ter o seu dia especial, vocês têm de ser capazes de fazer o mesmo". E a pequenita lá foi, no dia 12 de Setembro, saborear a festa a que tinha direito, sem saber que as imagens do momento em que o pai morreu a perseguiriam pelo resto da vida.  

Mas a memória destas vítimas foi de tal maneira ultrajada pelo governo belicista norte-americano, e em nome delas foram cometidos tantos e tão hediondos crimes, que se torna difícil para mim invocá-las neste dia: sinto-me a participar numa gigantesca manobra de propaganda. Acredito que nenhuma dessas pessoas quereria que a sua trágica morte servisse de pretexto para iniciar guerras que iriam infligir a  milhões de famílias sofrimentos idênticos àqueles pelos quais a sua própria família passou.

Também me incomodam as frases que se repetem muito nesta data, do tipo "o 11 de Setembro veio mudar tudo". Pelo contrário: o 11 de Setembro não veio mudar nada, apenas reforçou os vícios antigos. O mundo continuou a seguir a sua rota de violência e impiedade. A seguir a essa esquina, nenhum dos poderosos se lembrou de escolher uma direcção que conduzisse à paz. 


10 comentários:

jj.amarante disse...

E provavelmente continuará "a seguir a sua rota de violência e impiedade" como acaba de dizer. Os EUA com o seu complexo militar-industrial precisam de estar permanentemente em guerra. Agora que abandonaram o Afeganistão, o Iraque e a Síria preparam-se para uma guerra com a China.

CCF disse...

Que bonita e sensata crónica Helena, não obstante ser sobre algo horrível.
~CC~

josépacheco disse...

Admiro uma crónica, sobre um tema tão complexo, que consegue não negligenciar nenhum aspecto importante, e arrumá-los coerentemente, por muito contraditórios que sejam entre si. O problema das diversas correntes da esquerda é que cada uma insiste em só querer ver um dos lados da questão. Os lados existem todos e nenhum pode ser menorizado (incluindo, é claro, o facto de as grandes vítimas serem as mulheres que conheceram alguma emancipação, ainda que me digam que isso aconteceu através de uma hipócrita invasão dos EUA e da NATO, pelas piores razões).

Helena Araújo disse...

jj.amarante,
espero sinceramente que não! Queriam ou não queiram, saíram do Afeganistão com o rabo entre as pernas. Pode ser que aprendam a lição sobre os riscos de se meterem noutras aventuras bélicas.

Helena Araújo disse...

CCF,
obrigada.

Helena Araújo disse...

jose pacheco,
quem me dera que fosse possível salvar desse país todas as pessoas que não querem viver segundo a sharia enviesada dos taliban! Só que país nenhum os quer receber. Somos todos muito solidários, mas é só enquanto não mexe com a nossa vida...
Durante o período de ocupação as coisas não eram tão simples como se diz por aí. Só numa parte relativamente pequena do país é que as mulheres podiam aspirar à liberdade de estudar e de trabalhar. E o preço dessa liberdade foi pago com o sangue de muitos civis.
Algumas mulheres puderam estudar, outras perderam os filhos e os maridos como "danos colaterais" na luta contra os taliban - e eu, a olhar para toda esta tragédia, sinto-me aliviada por ninguém esperar de mim a resposta certa. Suspeito que não haja uma resposta certa para dar porque em qualquer caso o sofrimento é imenso.

Carla disse...

Cara D. Helena,

Tenho um filho de 10 anos, que pretendo, desperto para o mundo. Entenda o elogio maior que lhe faço ao dizer que a leitura das suas crónicas me ajudam a explicar-lhe o mundo. A entender que a empatia é fundamental, que a história não tem só um lado, mas que o humanismo não é negociável.

Helena Araújo disse...

Carla,
este deve ter sido o maior elogio que recebi neste blogue.
Muito obrigada!

Carla disse...

Cara D. Helena,

Entenda o quanto lhe sou grata por me ajudar a sistematizar os meus pensamentos, no meio do ruído em que a internet se tornou. Optei, já há muito tempo, desligar-me das redes sociais. Não fui capaz de lidar com a estupidez humana que por lá encontrei.
De minhota, para minhota, permita-me,

Um enorme beijo

Carla Sousa da Costa

Helena Araújo disse...

De volta: um enorme sorriso. De minhota para minhota. :)