De cada vez que ouço uma homilia do padre Karl Kern tenho vontade de a traduzir para os clientes deste blogue. Uma vez cheguei a pedir-lhe o texto, para me poupar o trabalho da transcrição, mas ele não tinha: fala sem anotações. Mais aumentou a minha admiração.
O Karl Kern tem o dom raro de aliar um conhecimento profundíssimo da Bíblia a uma forma simples e cativante de o transmitir. A ele devo uma grande parte da minha cultura religiosa, e algumas celebrações absolutamente inesquecíveis. Em particular, as celebrações para famílias: não conheço ninguém como ele para levar as crianças ao coração do mistério oferecendo-lhes frases, gestos e símbolos simples e belos, que elas são capazes de entender.
Do muito que lhe devo, lembro hoje uma revelação sobre algo que desde sempre me afligiu nas leituras da sexta-feira santa: como era possível os judeus preferirem soltar um assassino a salvar Jesus? Como se podia ser tão estúpido e maldoso? A culpa - afinal de contas, e como quase sempre - foi do tradutor. Na realidade, Barrabás era um combatente pela libertação da Palestina, que estava sob ocupação dos romanos. É natural que fosse uma figura simpática aos judeus. Além disso, a reacção dos judeus de Jerusalém é também resultado do antiquíssimo distanciamento entre a cidade e o campo. Para os habitantes de Jerusalém, Jesus era um provinciano, um parolo esquisito que andava de terra em terra. Estava muito longe de ser um dos seus.
Traduzo a homilia de Karl Kern de ontem, sexta-feira santa, a propósito da paixão segundo São João (capítulos 18 e 19 desse evangelho).
Espero que gostem.
(Pode-se ouvir aqui. Todas as homilias: aqui)
"Caros irmãos e irmãs, aqui em St. Michael, e em casa, em frente ao computador,
a paixão segundo São João vem ter connosco num registo linguístico elegante, elevado e até alheio à realidade. É o estilo linguístico da superioridade. Na perspectiva de João, Jesus avança pela sua paixão com um impressionante domínio da situação, e sem contestar. Não há orações conflituosas no Monte das Oliveiras. Não há um grito desesperado na cruz.
O conjunto é construído como um drama em cinco actos.
No primeiro acto - a detenção - os soldados recuam quando ouvem o detido afirmar o nome de Deus em código - "eu sou". Magnânimo, o bom pastor deixa partir as suas ovelhas. Perante Caifás, no segundo acto, apresenta-se de tal modo autoconfiante que um dos criados lhe dá uma bofetada. E no longo diálogo durante o interrogatório de Pilatos tem-se a impressão de que Jesus é o senhor da situação, enquanto Pilatos parece encurralado e desprovido de poder.
Hoje ouvimos a música de Heinrich Schütz para o caminho do Calvário e a morte de Jesus.
Em João, Jesus carrega ele próprio a sua cruz, sem ajudas. E continua senhor da situação quando termina a sua obra com a frase: "Está consumado".
Também o seu sepultamento, com cem libras de mirra e aloés, lembra o funeral de um rei.
Sentimos vontade de questionar: não será isto demasiado alheio à realidade? Dir-se-ia mesmo: sobre-humano? Esta absoluta tranquilidade não terá até um efeito desencorajador?
Note-se que o evangelho de São João está construído em duas partes: nos doze primeiros capítulos, a sabedoria divina, o Logos, desce à terra. E a partir do 13º capítulo (a última ceia), Jesus sabe que começa o seu caminho de regresso ao Pai. É isso que explica esta narrativa, na qual não há lugar para a contestação.
João deve ter estado muito perto dos acontecimentos. A sua descrição inclui detalhes que só uma testemunha visual poderia saber. Talvez os soldados tenham mesmo recuado e caído por terra quando Jesus se apresentou com tanta segurança.
Mas tudo isto foi escrito a partir da perspectiva da fé. E João não ignora a cena no Monte das Oliveiras. Alguns gregos querem vê-lo no Monte do Templo, e ele diz-lhes "a minha alma está perturbada". Sabe o que lhe está destinado. "Que direi? Pai, salva-me desta hora?" E então, ele próprio reconhece: "Mas foi precisamente para esta hora que vim!" Segue-se a sua oração: "Pai, glorifica o teu nome".
Profundamente perturbado, entrega-se à vontade de Deus. Até que, perante o sumo-sacerdote - e este é o subtexto da paixão segundo São João - com quem se cruza rodeado por gritos, a perturbação dá lugar à segurança.
Nenhum de nós consegue escapar à perturbação. E esta narrativa da paixão mostra-nos que sem atravessar a perturbação não se consegue atingir a firmeza. Isto também diz respeito à nossa fé.
Mas olhar para Jesus é olhar para o inalcançável. Não é uma descrição realista. A grande literatura é também o desenho de uma realidade oposta. O mesmo acontece com a paixão segundo São João. Ele descreve aqui um homem justo em sofrimento, que se entregou e conquistou esta firmeza interior.
Não podemos alcançar este autodomínio. Mas podemos erguer o olhar para o nosso salvador. E podemos olhar pela perspectiva do discípulo amado. A partir da ferida aberta no peito de Jesus, o símbolo da última entrega, que permanece presente no sacramento até hoje - o sangue da eucaristia e a água do baptismo, que nos dão vida - podemos aproximar-nos dele e segui-lo na medida do que nos é possível.
Olhemos para o discípulo amado, ouçamos a paixão com o discípulo amado.
Ou: a manhã da Páscoa já se aproxima, Maria de Magdala dirige o seu olhar para o crucificado, o seu amigo de sempre. Ele que a conduziu ao longo da vida - também em muitos momentos de perturbação."
A igreja de St. Michael é no centro de Munique. E não me ocorre mais nada em que Munique seja melhor que Berlim.
(Ai, os Alpes ali atrás, e Florença quase a seguir também são pontos positivos. De resto, mais nada.)
1 comentário:
Muito obrigada pela tradução da homilia.
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