27 março 2021

mas os ciganos, Senhor...

Partilho um texto da Leah Pimentel.
Dilacerante. 
A Laurinha morreu faz hoje 3 anos. 


"Chegou a hora de contar a história
Há 5 anos morava em Vila Real de Santo António. A cinquenta metros de mim, uma comunidade cigana, daquelas com burros, luto carregado e um ou outro carro a cair de podre. Em tudo diferentes dos ciganos que vendem roupa nos mercados. Bom dia, vizinha, olá boa tarde, laranja para cá, iogurte para lá, até um deles se assomar para ter uma conversa. Que gostava muito do meu falar e que me queria convidar a ser madrinha do bebé que aí vinha. Jovem, olhar aberto, verde, frontal. Aceitei. No dia seguinte fui convidada pela matriarca para beber café. A barraca muito limpa, e já tinham duas meninas. A Miriam e a Naíde. Expliquei que madrinha não sabia bem, já que não tenho nenhum credo. Não, comadre, é da lei dos ciganos, não é preciso igreja.
Assim conheci a Daniela e o David. 24 e 26 anos. Aquele bebé era um acidente, não queriam ter mais, mas o planeamento familiar tinha falhado. Recebiam o Rendimento Mínimo e a Naíde estava a ser seguida em Faro por um estrabismo grave. Era bebé de colo. A minha comadre é danada para a limpeza, e à custa de tanto esforço, de carregar tantas bilhas de água, começou com contracções. No regresso de Faro, vinha o David a guerrear com ela, que lhe podia pedir ajuda, e bate no carro da frente. 1 500€ de arranjo, que emprestei, porque no momento podia e eles precisavam da carrinha para o ferro velho. A cada dia 11, antes de passarem para casa vindos de levantar o vale paravam à minha porta para o pagamento dos 150€ combinados. Nunca falharam. O David é convocado para uma formação profissional, das que servem para enganar estatísticas e encher os bolsos a uns quantos. Era em Tavira, contas feitas era mais barato ir de comboio, 2,70€ para cada lado, 5,40€ por dia, 129,60€ ao fim do mês. Não dava para tudo, decidem ir dormir na carrinha para Tavira, estacionados à frente do Centro de Formação. A Miriam ficava a cargo de uma cunhada, para não faltar à escola. Foram corridos de todo o lado, e por mais que explicassem, não conseguiram. Nem ao lado das caravanas dos holandeses que passam admiráveis férias debaixo do viaduto, com vista para os caixotes de lixo do mercado. Não desistiram e voltaram as viagens de comboio. A Naíde tem que ser levada a Lisboa, ao Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto, por três vezes, para consultas, testes e afinação de óculos de correcção. De cada vez o David pedia o justificativo para apresentar no curso. O dito mencionava o período em que estiveram presentes no local, sem mencionar o tempo de viagem, mais de 3 horas em cada sentido. O David é expulso do curso por faltas injustificadas, e sem direito a qualquer subsídio durante 2 anos. Tentei, claro que tentei explicar, mas foi batalha perdida. Os papéis falavam mais alto.
Nasceu a Violeta, a minha primeira afilhada, em Dezembro de 2013 e a barraca onde viviam estava a cair. O presidente da Câmara deu-lhes um apartamento na Vila e quando se quiseram mudar, os outros ciganos (Rom), que os meus são Kalderash, juntaram-se e não os deixaram tomar posse da casa. Eram mais de 300, meteu polícia, e o Presidente nada pode fazer. Voltaram para a barraca com a promessa de reconstruírem uma ruína que havia mesmo ali ao lado. O implante da Daniela falhou e fica grávida da Laura, que nasceu com as obras paradas. Que não havia verba. Mas havia pedreiros. Rapidamente peço uma lista do material em falta, e com a ajuda de muitos de vós, em menos de 3 semanas havia paletes de tijolos e de sacas de cimento, tijoleira para o chão e paredes, portas, janelas, loiça de casa de banho, material eléctrico, electricista pro bono, fotos e contas aqui apresentadas. Estamos ainda no período em que o David não recebe qualquer apoio, devido às faltas “injustificadas”. Os pedreiros são transferidos para outras obras da Câmara, o meu interlocutor mostrou-se um homem sem carácter, mentiroso e sempre a jurar por deus e a gabar-se do quanto rezava por aquela família nos encontros semanais do grupo de reflexão ultra católico a que pertence.
A barraca cai com a chuva, a Laura nasce, e vão todos dormir para dentro da carrinha. O David mal se tapa, para que a mulher e as quatro filhas possam ter todos os cobertores. Apanha uma pneumonia, que passa à Laura, então com dois meses.
No meio disto tudo, nem um dia a Miriam falta à escola, o pai está presente em cada reunião, é estimada por todos, boa aluna, e a Naíde entra para a creche. Querem que as filhas estudem, sonham com universidades, e não há casamentos combinados para nenhuma delas.
A Laura nunca recupera, não deixa de ter dificuldades respiratórias, é transferida para Lisboa, para uma bateria de testes, entra em coma a primeira vez, e passa mais tempo no hospital que em casa. O David encarrega-se das outras três meninas, comida, banhos, escola, enquanto se divide entre Vila Real de Santo António e o Hospital de Faro.
Muito tempo passado, lá acabam a reconstrução da ruína. Dois meses depois, a bancada da cozinha em alvenaria, construída pela Câmara, cai em cima do pé da Daniela. É a 2ª vez que as assistentes sociais se dão ao prazer sádico de assustar a Daniela com ameaças de que lhe retiram as filhas porque a cozinha não tem condições. Se falaram com a Câmara, se pressionaram para que lá fossem reparar o erro? Claro que não. Dá mais gozo apavorar.
A Daniela pede laqueação de trompas e a médica recusa alegando que é muito jovem.
Chega finalmente o dia em que pode voltar a receber o Rendimento Social de Inserção e falta à reunião, por, mais uma vez, ter que levar a Laura de urgência para Faro. De cabeça perdida, não entrega o justificativo, nem precisava, porque não é aceite, e está outra vez suspenso durante 6 meses de qualquer apoio, para além dos abonos das crianças.
São gente boa, de confiança, têm a chave da minha casa, são respeitados na Vila. Respeitados ao ponto de terem crédito nas bombas de gasolina de cada vez que têm que vir para Faro ou ir para Lisboa.
A Miriam tem onze anos, está no 3º F, que não sei o que é no novo sistema escolar, a Naíde tem cinco e anda na pré, e a Violeta anda na creche.
Não preciso dizer que ninguém dá trabalho a um cigano. E mesmo que dessem, quanto ganharia? Quanto custa ir trabalhar? É fácil fazer as contas. 500 euritos no máximo, tirem o combustível e uma bucha para enganar a fome, quanto leva um homem para casa? E quem leva as filhas à escola, que ainda é longe e não há transportes? E quem leva a Laura ao hospital? E quem trata das meninas quando a Daniela está internada com ela?
Só falta apontarem uma pistola à cabeça do David e dizerem-lhe VAI ROUBAR!. Mas eu sei que não vai. Para além de não ter jeito e de para isso não ter sido educado, gosta demais daquela mulher e daquelas quatro filhas para arriscar fazer má figura ou perder a honra. Assim são os meus compadres.
Obrigada aos que confiam, obrigada mil vezes a quem me tem ajudado a que eles não passem ainda pior." Leah Pimentel

2 comentários:

Lucy disse...

Obrigada por partilhares. Devia ser muito difundido

Helena Araújo disse...

Também partilhei no facebook. Já há pessoas a mexerem-se a sério para os ajudar como deve ser.