Esta manhã, a newsletter do Spiegel era um texto de Dirk Kurbjuweit a propósito do momento de cisão que aconteceu há um ano, quando um partido do espectro democrático aceitou o apoio da AfD para conquistar o poder.
Traduzo (rapidamente) o texto - e aqui o deixo com os meus melhores cumprimentos para o Rui Rio, que anda a fazer contas de cabeça para vender a alma ao diabo em troca de um lugarzinho de poder:
"Repentinamente põem-se todos em movimento, quase vinte homens, muitos deles de casaco preto, duas mulheres, uma frente alargada, Björn Höcke na linha da frente. Atravessam a sala de plenário: vão da extrema direita, onde se sentam, para a esquerda, onde o grupo parlamentar Die Linke tem os seus lugares. A seguir abandonam a sala, e saem para o parque.
Aconteceu ontem, na Turíngia, em Erfurt: plenário parlamentar da Land. Um intervalo para arejar a sala, durante o qual a facção da AfD marchou em formação cerrada, o que mais ninguém aqui faz, dando a ideia de uma tentativa de intimidação: somos muitos. Somos um poder.
Faz exactamente um ano que estas pessoas desenvolveram um poder assombroso. No dia 5.2.2020 o deputado do FDP Thomas Kemmerich foi eleito ministro-presidente da Turíngia com o apoio da AfD. Kemmerich aceitou a eleição, o que representou uma violação do tabu, um ataque grave à Democracia liberal. Um choque inédito para a República. O FDP da Turíngia, e também a CDU, que a princípio não se quis demarcar claramente da AfD, deixaram abrir uma brecha nas defesas contra a extrema-direita. Terá sido um prelúdio? Poderia repetir-se noutro lugar, e até no governo federal?
É certo que Kemmerich se demitiu alguns dias depois, mas as consequências desta eleição foram pesadas: a líder da CDU, Annegret Kramp-Karrenbauer, demitiu-se do seu cargo por não ter conseguido controlar imediatamente a CDU na Turíngia. O chefe do FDP, Christian Lindner, devia ter-se demitido mas não o fez; desde então a sua posição ficou muito enfraquecida.
Depois veio a crise da Covid e sobrepôs-se a tudo o que anteriormente tinha algum peso. "Erfurt" quase deixou de ser um tema, e a AfD perdeu algum do seu carácter ameaçador porque caiu muito nas sondagens. Durante a pandemia não tem estado capaz de fazer nenhuma proposta que agarre os cidadãos. Mas ainda está aí, à espreita da próxima oportunidade.
Ontem, um dia antes de se cumprir esta efeméride, estive em Erfurt e assisti a uma sessão do parlamento da Turíngia, na zona VIP do estádio de futebol, onde as sessões plenárias têm actualmente lugar. Há aqui uma sala enorme, que permite sentar as pessoas a boa distância umas das outras.
[...] A certa altura Kemmerich levanta-se e dirige-se para os lugares do governo, onde está o ministro-presidente Bodo Ramelow. [...] Uma cena estranha: o presidente-por-uns dias conversa com seu sucessor, que foi também o seu antecessor. Ramelow chorou quando Kemmerich o substituiu no cargo com a ajuda dos votos da AfD. Björn Höcke está sentado a pouca distância dos dois. Ramelow não falaria com ele.
A seguir, a situação no plenário complica-se. A facção de Björn Höcke propõe dois dos seus membros para o PKK - o grémio que controla o Gabinete de Protecção da Constituição na Turíngia. A AfD tem direito a dois lugares, mas até agora os deputados dos outros partidos chumbaram sempre os candidatos. Contudo, o Tribunal Constitucional da Turíngia determinou recentemente que não podem fazer isso por "motivos não objectivos".
Os grupos parlamentares dos partidos do governo - Linke, SPD e Verdes - tentam agora provar que os dois candidatos da AfD, Jens Cotta e Michael Kaufmann, são tipos especialmente horrorosos, membros da ala da extrema-direita da AfD (essa ala foi entretanto desmantelada), islamofóbicos, inimigos da Democracia liberal. E conseguem fazê-lo com algum sucesso, sobretudo usando citações das suas páginas nas redes sociais. Seria absurdo que estes homens, que deviam ser vigiados pelo Gabinete de Protecção da Constituição, tivessem a seu cargo o controlo desta instituição.
A AfD pede uma pausa, no início da qual os seus deputados marcham para fora da sala em sólida formação. Nas votações que se seguem, os candidatos não são aprovados. O problema é que isto não pode continuar assim indefinidamente. Os outros grupos parlamentares terão de aceitar dois candidatos da AfD como "bons", caso contrário correm o risco de serem acusados de comportamento anticonstitucional. A AfD está ali, os seus deputados foram eleitos, têm direitos. Mesmo que algumas coisas pareçam absurdas.
Ao anoitecer debate-se uma proposta de lei que vem do fundo do coração da AfD. A Turíngia deve transferir os "chamados 'requerentes de protecção'", que na realidade são "pessoas desordeiras, agitadoras e violentas", para "instalações de internamento com protecção especial, fora das localidades". Trata-se de campos de internamento de alta segurança para refugiados que se tornaram agressivos.
A estratégia dos partidos do governo consiste agora em mostrar à AfD até que ponto esta moção se enquadra na tradição dos nazis. Um deputado diz que isso é Schutzhaft ("prisão protectora"), um conceito que vem do léxico nazi. Fala-se de um campo de concentração para os povos Roma e Sinti durante o período nazi. A seguir, passa-se para o nível pessoal: "A proporção de pessoas repugnantes é especialmente alta na AfD", grita um deputado.
Deve-se descer a este nível?
De manhã, oradores da AfD insultaram os outros partidos chamando-lhes "não democratas", e compararam a situação actual com a ditadura da RDA. No seu conjunto, este longo dia foi feio, o que começou se dever à AfD - mas os outros também não encontraram uma boa maneira de lidar com este partido. O desafio permanece em aberto.
E então sucede também esta cena: um dos empregados da sala avisa um jornalista de que deve pôr a máscara. O jornalista resmunga 'A AfD também não usa máscaras.' O empregado responde: 'A AfD não é o modelo.' "
3 comentários:
Tem piada que o livro que o Ventura disse no podcast Profectus que mais o marcou foi o "Doutor Fausto".
Prōfectus #10 - André Ventura
https://www.youtube.com/watch?v=JN5uDxWcYUw
Infelizmente, a Direita Portuguesa não tem a cultura democrática da CDU alemã (que nem sempre foi assim, a sua relação com o nazismo foi, até aos anos 70, algo ambígua, muito embora Adenauer fosse um anti-fascista).
A razão creio que se compreende, as acções do Estado Novo conduziram a um País atrasado, colonialista e racista, mas não completamente derrotado e destruído.
Há ainda uma narrativa numa certa Direita Portuguesa de que o 25 de Abril foi uma traição que levou à perda dos territórios ultramarinos (na óptica deles). Ventura vai colher votos a esse território que era coutada sobretudo do CDS...
As lideranças do PSD e do CDS nunca alinharam, bem entendido, nesse discurso, mas não me parece que o tenham combatido, porque queriam integrar essa Direita e até evitar o aparecimento de Partidos Extremistas. Fizeram mal e agora, quando vêm o eleitorado a fugir-lhes, andam de cabeça perdida e estendem a mão ao Chega.
Arriscam-se a legitimá-lo e a serem comidos por ele...
Isso mesmo. Infelizmente.
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