23 fevereiro 2021

os monumentos intocáveis

A propósito da sugestão de derrubar o Padrão dos Descobrimentos, feita pelo deputado socialista Ascenso Simões:

1. Fique registado que a sugestão foi inequivocamente criticada pela esmagadora maioria da esquerda. Quando, daqui a uns tempos, houver por aí pessoal a choramingar que "querem mandar a Torre de Belém para a Coreia do Norte", pode-se responder que a esquerda deixou bem claro que não se toca nem sequer no Padrão dos Descobrimentos, quanto mais. 

2. Fique registado que aquele senhor que quer meter minorias étnicas em campos de concentração aproveitou o ensejo para apelar ao voto no seu partido com um argumento de antológica cobardia:
"É isto que temos...ou votamos no CHEGA para parar esta loucura, ou vamos acabar todos a pagar indemnizações pelo Império Colonial."
Agarrar-se obstinadamente a uma ficção histórica que lhe permita furtar-se às suas responsabilidades é uma atitude que envergonha Portugal, e faz do Chega um partido de poltrões: gente que morre de medo de assumir. A valentia que têm só lhes chega para perseguir os mais fracos. Quando o adversário é forte, metem-se debaixo da cama com o rabinho entre as pernas e a gemer "ai, mãe!"
Mas, diga-se de passagem, não é preciso fugir para baixo da cama. Primeiro, porque - tanto quanto sei -  ainda nenhum país mandou a factura (excepto a Grécia, que já fez a conta aos prejuízos que a Alemanha nazi lhe causou - mas parece que a carta não chegou ao destinatário). Depois, caso algum país enviasse a factura, Portugal podia esconder-se atrás da Grã-Bretanha e das outras antigas potências imperiais europeias, armando-se em "português suave" e de "brandos costumes".
(Claro que também podia seguir o exemplo do moco como a Alemanha tem assumido a sua responsabilidade no Holocausto, mas isso é seguramente mais do que um partidário do Chega conseguiria suportar.) 

3. Faço um gostinho à nova moda de equiparar tudo (e até vou citar o Trump: "very fine people on both sides") e sugiro que se deixe ficar o Padrão dos Descobrimentos como está, complementando-o com um conjunto de painéis de informação iconológica da estatutária de sistemas ditatoriais (o memorial soviético de Treptow, em Berlim, por exemplo), e do seu oposto (obras de arte da mesma época que escaparam à lógica iconográfica do regime). 

4. De um modo geral, parece-me mais instrutivo complementar a estatutária instalada, juntando-lhe informações sobre a época e a ideologia que lhe deu origem, e enriquecendo-a com novos monumentos que espelhem o modo como a nossa época olha para si própria e para essas páginas da História.
(Um exemplo: do mesmo modo que seria impensável os EUA fazerem hoje um museu da descoberta da energia nuclear sem referir as bombas de Hiroxima e Nagasaki, é impensável falar na extraordinária aventura marítima portuguesa sem referir também o negócio português da escravatura, ou os saques, os massacres e as destruições das populações que "descobrimos".)  

5. Dou a palavra a Daniel Carrapa, que escreveu sobre este assunto um texto ponderado e inteligente:



"Seduzem-nos com a topiária e quando se vai a ver já estão a querer deitar abaixo o Padrão dos Descobrimentos. 😄
Mas a questão merece ser discutida com toda a seriedade. E uma primeira lição a reter da proposta de demolição invocada por um deputado português é a de que a falta de lucidez é fatal em política. O que, em tempos tão complexos e decisivos como aqueles que estamos a atravessar, pode ter consequências ainda mais graves.
Se o que pretendemos é acicatar e alavancar a extrema direita nacionalista, então este é o caminho. Nenhum problema estrutural do país será resolvido, nenhuma lição será retirada da História, e assistiremos ao crescimento da representatividade política daqueles que pretendemos combater.
Há, sem a mais pequena sombra de dúvida, uma necessidade profunda de reflectir sobre a nossa visão colectiva da História. Vemo-lo nos ressurgimentos de um nacionalismo bacoco, encharcado na iconografia do Estado Novo, ignorante do quanto nessa memória histórica é uma construção fictícia - e contemporânea - tão falsa como as muitas ameias que o antigo regime andou a construir nos castelos deste Portugal.
Mas esse debate não pode ser transformado numa redutora discussão sobre o que temos para demolir. Que trágica concessão à extrema direita seria fazê-lo.
É curioso que o Padrão dos Descobrimentos se torne um foco de controvérsia enquanto se ignora o quanto da Exposição do Mundo Português está entranhado na urbanidade daquela parte de cidade. Lisboa é, como todas as cidades, o receptáculo de imensas camadas de história e de política, de catástrofes, de tragédias, de alegrias. Como vamos dissecar o bom do mau? Ignorando, de passagem, os arquitectos e artistas que viveram no período da ditadura, muitos dos quais nos deixaram uma obra notável.
Para além de todos os paradoxos a que esse exercício aberrante nos conduziria. Deitaríamos abaixo metade do Castelo de São Jorge? E como iríamos demolir as demolições do Estado Novo? - como bem me fez notar a Leonor Cintra Gomes.
E depois, apagaríamos dos livros o Cottinelli Telmo? E já agora o Duarte Pacheco. E Cristino da Silva, e Pardal Monteiro...
Este não é, com toda a evidência, o caminho. Uma visão autocrítica da História tem de fazer-se em sede da construção e não da demolição. Em parte, da construção de um conhecimento mais clarividente sobre a nossa própria História Portuguesa, dos idos das campanhas marítimas à guerra colonial. E também da construção, por nós próprios, da nossa obra, do nosso contributo, do nosso legado para a cidade projetada no futuro. Erigindo, a par com as ideias do passado, as nossas próprias ideias e valores, a nossa diversidade e universalidade, os nossos orgulhos e, porque não, os nossos arrependimentos. Para que outros, depois, um dia, as admirem e julguem."

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