José Rodrigues dos Santos queixa-se de que está a ser vítima de uma "nova campanha de ódio" e que está "habituado a ver práticas de bullying e intimidação contra tudo o que se atreva a desviar-se do conhecimento 'autorizado' ", e decidiu reagir para não deixar que o ódio e a mentira prevaleçam e a desinformação prossiga.
Confesso que já me ri muito, especialmente da primeira vez que o vi a imitar um nazi com alegadas preocupações humanistas. Mas agora vou-me emendar, atentar às suas explicações, e comentar apenas aquilo que ele afirma. Sem bullying nem intimidação sem ódio nem desinformação.
Depois me dirão se consegui.
* Questão prévia, dirigida à RTP:
Quanto custa um minuto de publicidade na televisão pública estatal à hora a que a Grande Entrevista com José Rodrigues dos Santos foi transmitida? Quanto custam 23 minutos de publicidade?
Poderão dizer que o Holocausto é um tema que interessa o grande público, e nesse caso, pergunto: foi feita igual entrevista à historiadora Irene Pimentel, que recentemente publicou um livro sobre o Holocausto? E ao escritor João Pinto Coelho, que já fez vários romances nos quais o Holocausto é um tema central? Caso me respondam que sim, já cá não está quem falou. Caso me respondam que não é possível estar sempre a convidar pessoas para falar sobre o mesmo tema, pergunto quais foram os critérios que levaram à escolha de José Rodrigues dos Santos para falar do Holocausto (têm de ser critérios muito sólidos, uma vez que a RTP corre o risco de ser acusada de estar a usar dinheiros públicos para beneficiar os negócios privados de um dos seus).
Antes de continuar para o tema que aqui nos traz, pergunto: que elementos de ódio, bullying, intimidação e desinformação encontraram no que acabei de escrever?
Passemos então para a análise do discurso de José Rodrigues dos Santos:
* Os nazis que invocaram razões humanitárias
Afirma JRS: "O que eu expliquei (...) é que os nazis invocaram razões humanitárias para o extermínio, o que é bem diferente. Quando eu digo “A certa altura há alguém que diz – Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?”, estou apenas a citar de improviso o raciocínio dos nacional-socialistas, não o meu.
E ainda: "O que eu disse é que, no processo de decisão que conduziu ao Holocausto, os nazis invocaram razões humanitárias para conceber os gaseamentos, o que é muito diferente. Atente-se ao primeiro documento nazi existente a preconizar explicitamente o extermínio dos judeus. Esse documento foi enviado de Poznan a Adolf Eichmann a 16 de julho de 1941 pelo oficial SS Rolf Hoppner (...)"
Parece-me que não minto se afirmar que José Rodrigues dos Santos disse mesmo que "os nazis invocaram razões humanitárias para conceber os gaseamentos/o extermínio" - certo?
O problema é que:
1. Passar de uma carta escrita por um oficial SS para "os nazis" é uma generalização abusiva.
2. A formulação "seria mais humano" aparece numa carta toda ela profundamente desumana (a saber: "seria mais humano" vem imediatamente antes de "acabar com os judeus não aptos para trabalho", sendo que matar os judeus rapidamente "seria mais agradável"; logo a seguir, propõe esterilizar todas as mulheres em idade fértil. Quem quiser ler o documento completo, encontra-o neste post, traduzido do original alemão para português).
Para poder concluir e afirmar que este oficial SS "invoca razões humanitárias", é preciso fazer questão de ignorar olimpicamente todos os contextos: o do próprio texto, o que sabemos sobre o modo como os nazis trataram os judeus, e o que sabemos sobre o modo como aquele nazi concreto tratou os judeus sob a sua jurisdição.
3. Para além deste "seria mais humano" de uma carta de um oficial inferior que não deixa dúvidas sobre o absoluto desprezo que este votava aos judeus, JRS não apresentou até agora mais nenhuma prova para firmar a sua conclusão sobre as "razões humanitárias" "invocadas" "pelos nazis" (com aspas nas expressões que ele usa).
Teria sido conveniente ter mais provas, e mais convincentes, antes de ir à televisão fazer uma afirmação que é, digamos, absolutamente revolucionária, e que contradiz tudo o que até hoje se aprendeu em trabalhos sérios de investigação sobre o Holocausto.
Em suma: a frase
"os nazis invocaram razões humanitárias para conceber os gaseamentos/o extermínio"
está toda errada.
Com base no documento que apresenta, José Rodrigues dos Santos só podia dizer que
"por estranho que pareça, o oficial SS Rolf Hoppner incluiu uma expressão que invoca valores humanitários numa carta que está nos antípodas do humanitarismo"
Chegados aqui, pergunto: que elementos de ódio, bullying, intimidação e desinformação encontraram no modo como argumentei?
Podemos passar ao ponto seguinte?
* A piscina, o bordel, e o negacionismo
Do post de José Rodrigues dos Santos:
Isso mesmo, vamos por partes.
Antes de mais: estamos a falar do Holocausto - certo?
Estamos a falar dos judeus - certo?
Começaremos então por informar que os prisioneiros dos campos não eram tratados todos da mesma maneira. O sistema impunha que os judeus fossem tratados com ainda mais crueldade que os outros prisioneiros. O bordel e a "piscina" estavam-lhes expressamente vedados. Outros prisioneiros tinham um tratamento menos terrível (há até quem diga que tinham "privilégios" e "prémios", o que são palavras estranhas naquela realidade, mas seja).
Sobre a "piscina", José Rodrigues dos Santos vai buscar o testemunho de Ryszard Dacko: ‘Havia uma piscina em Auschwitz para os bombeiros’, confirma Ryszard Dacko. ‘Eu podia nadar lá’” (página 253). O senhor Dacko era um prisioneiro em Auschwitz, esclareceu Rees. Como já vi que Irene Pimentel não está a par do assunto, informo-a que a dita “piscina” se situava no Stammlager. (...) Pode ver imagens da “piscina” do Stammlager neste link do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Vlyp3MqGJAg.
Convenhamos que a frase sobre a historiadora Irene Pimentel não estar a par do assunto fica mal a quem se queixa do bullying das redes sociais, mas adiante.
Irene Pimentel, que acaba de publicar um livro sobre o Holocausto, afirma que em Auschwitz-Birkenau não havia piscinas. José Rodrigues dos Santos rebate, dizendo que o bombeiro Ryszard Dacko podia nadar na "piscina". O que é verdade: porque era bombeiro (ou seja: tinha certos "privilégios") e - factor decisivo - não era judeu.
JRS informa ainda que a piscina se encontra no Stammlager (que é Auschwitz I e não o campo Auschwitz-Birkenau de que a historiadora falava) e partilha um link com um filme da dita piscina, que vem acompanhado pelas seguintes informações: "This water retention tank was built at the Auschwitz base camp in 1944 as the danger of Allied air raids became greater. Water retention tanks had become increasingly common throughout the Reich following the Hamburg fire raids of July 1943. The SS used this as a swimming pool and had a diving board installed. This pool is behind block eight and would have been completely off bounds for prisoners."
Parece-me curioso que José Rodrigues dos Santos acuse Irene Pimentel de estar mal informada ao mesmo tempo que partilha um link que afirma o contrário do que ele próprio diz, concretamente: aquela piscina era só para os SS, e proibida aos prisioneiros.
Em todo o caso: sim, havia "piscinas" em Auschwitz. Mas - até que o José Rodrigues dos Santos apresente prova em contrário - não eram para os judeus. O que confirma a afirmação de Irene Pimentel referindo-se à máquina do Holocausto: em Auschwitz-Birkenau não havia piscinas.
Sobre os bordéis, o assunto podia resolver-se rapidamente, porque é o próprio José Rodrigues dos Santos que diz que os judeus não os podiam frequentar: “os detidos, salvo os judeus a quem tal era interdito, compravam o direito de frequentar os bordéis através de bilhetes entregues em função do seu trabalho”.
No entanto, acrescento algumas linhas sobre o assunto, porque há trabalhos recentes que lançam uma nova luz sobre o tema, e acredito que tenha interesse para os leitores.
Passando para um plano dos campos de concentração não abrangido pela máquina do Holocausto, que é o plano dos prisioneiros não judeus, João Pinto Coelho diz:
"mesmo os bordéis criados nalguns campos para “premiar” os mais produtivos não passavam de um embuste, um lugar de humilhação para os prisioneiros, ou mais um exemplo do cinismo e crueldade dos nazis. Oiçam-se as vítimas, pela voz de uma de muitas - Jozef Szajna: «Os bordéis eram apenas mais uma forma de os SS atormentarem os prisioneiros. Todos os que pensam que o bloco 24 era uma espécie de prenda para os prisioneiros, não fazem a mínima ideia do que foi Auschwitz.»"
José Rodrigues dos Santos responde que não é bem assim: "nem todos os prisioneiros masculinos encaravam o bordel como uma tormenta (...), Eugen Kogon (...) escreveu no seu livro L’État SS (...) que “o objetivo desta iniciativa (o bordel) era corromper os detidos políticos cuja influência se tornava dominante no campo”, (...) Os bordéis não eram necessariamente punições, meu caro. Eram concebidos como um prémio para os prisioneiros masculinos que se portavam bem (segundo os padrões das SS, claro). Escreve Laurence Rees no seu Auschwitz – The Nazis and the ‘Final Solution’: “Himmler decidiu que fornecer bordéis à rede de campos de concentração iria aumentar a produtividade dos prisioneiros ‘empenhados no trabalho’ (‘hard-working’ prisoners), excluindo os judeus, oferecendo-lhes assim um incentivo para trabalharem mais” (página 249). Com isto não estou a dizer que acho o bordel um prémio (como decerto será apressadamente dito se eu não fizer este esclarecimento), mas que os SS conceberam o bordel como um prémio e que decerto a generalidade dos prisioneiros masculinos que o frequentavam assim o encaravam (de tal modo que pagavam de livre vontade dois marcos para lá ir, pois a ida ao bordel não era compulsiva mas voluntária e apenas acessível a quem se “portava bem”). Rees entrevistou até um prisioneiro polaco, Józef Paczynski, que afirmou ter-se “rido” (página 250) quando soube do bordel, e foi um frequentador do dito estabelecimento, tendo descrito a Rees em pormenor o que aconteceu quando lá foi da primeira vez e conheceu uma “rapariga bonita e elegante” (elegant, good-looking girl) (página 250). Concluiu João Pinto Coelho: “todos os que pensam que o bloco 24 era uma espécie de prenda para os prisioneiros, não fazem a mínima ideia do que foi Auschwitz”. O João faz?"
Esta última pergunta é mais uma das que fica mal em quem se queixa do bullying nas redes sociais. E é também um enorme tiro pela culatra, porque a frase "todos os que pensam que o bloco 24 era uma espécie de prenda para os prisioneiros, não fazem a mínima ideia do que foi Auschwitz” não é de João Pinto Coelho, mas de Jozef Szajna, que esteve preso em vários campos (entre os quais Auschwitz e Buchenwald) desde 1940 até à fuga durante uma marcha da morte em 1945. E aqui temos JRS a questionar de forma muito infeliz se Jozef Szajna faz a mínima ideia do que foi Auschwitz.
Há investigação recente sobre o sistema de bordéis nos campos de concentração, que coincide com aquilo que Jozef Szajna afirmou, e à qual JRS aparentemente não teve acesso, porque não a inclui na resposta que dá a João Pinto Coelho. O que hoje se sabe é que o bordel foi mais uma das ideias perversas do sistema nazi, com o objectivo de aumentar a produtividade dos prisioneiros. A ideia falhou porque, por um lado, muitos dos prisioneiros que pretendia aliciar tinham um sentido de dignidade que não lhes permitia colaborar com tamanha perversão e, por outro lado, pessoas literalmente a morrer de fome e de frio não conseguiam aumentar a produtividade, e não tinham energia para o acto sexual. Os bordéis existiram nos campos, mas não tiveram os resultados que os seus mentores nazis esperavam.
Traduzo de uma entrevista na Süddeutsche Zeitung a Robert Sommer, autor de um estudo mais recente sobre os bordéis dos campos de concentração nazis, algumas passagens que confirmam as afirmações de João Pinto Coelho:
"O homem tinha 10 a 15 minutos. Havia regras para visitar um bordel: o prisioneiro tinha de baixar as calças, não podia ir de sapatos para a cama, não podia falar, só podia praticar a posição de missionário. Havia vigias nas portas, que o SS de vigilância no corredor usava para supervisionar o cumprimento das regras. Há relatos de prisioneiros sobre homens das SS que tinham um prazer particular nessa prática de voyeurismo. O chefe do campo de concentração de Sachsenhausen, August Kolb, era bem conhecido por isso. (...) O caso de Buchenwald mostra que no início o bordel foi muito concorrido. Mas os números de visitas baixaram rapidamente. A princípio, o bordel foi um grande acontecimento no campo de concentração. Para os prisioneiros que tinham meios monetários e saúde física para o frequentar, era aliciante ir conhecê-lo. E não o faziam necessariamente pelo sexo. Muitas vezes os homens queriam o contacto humano, ver ou falar de novo com uma mulher. Muitos dos prisioneiros já estavam há vários anos no campo de concentração, e a visita ao bordel podia ser o primeiro contacto de sempre com uma mulher. (...) À medida que a guerra avançava, cada vez menos prisioneiros tinham condição física para poder visitar um bordel. O sistema de bordel também foi desmistificado. Muitos homens sabiam que as mulheres tinham sido atraídas para o bordel com falsas promessas, ou tinham sido obrigadas. Além disso, o funcionamento do bordel do campo nada tinha a ver com o erotismo. A visita era um acto de abuso sexual sob vigilância total da SS, e um acto de humilhação. Também para os homens."
Passando agora para a questão do negacionismo, de que José Rodrigues dos Santos é acusado por Irene Pimentel (entre muitos outros), recordo que a pergunta do entrevistador foi:
- Em situação limite as pessoas habituam-se a tudo, mesmo ao horror absoluto?
A resposta de José Rodrigues dos Santos é (e omito a parte relativa aos chefes e ao pessoal da máquina nazi):
- Chegou ao ponto em que tinham um bordel no campo, que aliás aparece no romance, tinham uma piscina para os prisioneiros - e o bordel era para os prisioneiros, atenção. Uma escola para as crianças judias no Familienlager, em Birkenau. E nós ficamos assim um bocado...
Quer dizer: havia uma normalização disso.
José Rodrigues dos Santos não se deve ter dado conta de que, ao usar na televisão a palavra "piscinas" para designar reservatórios de incêndio que podiam ser usados por alguns prisioneiros "privilegiados", está a remeter os menos informados para um imaginário de estância de lazer. Provavelmente também não estaria ciente de que os bordéis e os reservatórios de água eram estritamente proibidos aos judeus. Ou então não soube explicar bem, durante a entrevista e nas explicações subsequentes, quando é que estava a falar dos prisioneiros em geral e quando é que estava a falar do Holocausto. O que não tem grande importância - qualquer um comete erros.
O problema é que "os bordéis e as piscinas" são um dos argumentos que os negacionistas usam para dizer que Auschwitz não era tão mau como afirma o "discurso oficial" (José Rodrigues dos Santos diz: o conhecimento "autorizado" / o discurso político-mediático).
Mesmo que não tenha feito de propósito, e acredito que não, ao falar com esta leveza nos bordeis, nas piscinas, e ao chamar conhecimento "autorizado" e discurso político-mediático aos resultados dos estudos académicos sobre o Holocausto, José Rodrigues dos Santos aproximou-se perigosamente da retórica dos negacionistas.
Se pode ou não ser acusado de negacionismo, não sei. Sei apenas que, se na Alemanha alguém falasse na televisão nestes termos, isso era um escândalo nacional, e seria com certeza levado a tribunal, para este responder ao país com um veredicto.
Chegados aqui, pergunto: que elementos de ódio, bullying, intimidação e desinformação encontraram no modo como argumentei?
Podemos passar ao ponto seguinte?
* A "normalidade" dos campos de concentração
Permitam-me usar um exemplo próximo do nosso tempo, que talvez permita entender mais facilmente porque é que critico o discurso de José Rodrigues dos Santos quando fala na "normalidade" e na "adaptação a condições adversas". Imaginemos que estamos a falar das mulheres que foram apanhadas na rede de uma máfia da prostituição e passam a viver dominadas por um gang que exerce sobre elas permanente pressão psicológica e violência física, tornando-as escravas sexuais obrigadas a prostituir-se nas ruas.
Imaginemos que a falar sobre a vida destas escravizadas, José Rodrigues dos Santos diria que essa é a "vida quotidiana à qual as mulheres se adaptam". Revelaria a confidência que lhe fez uma dessas escravizadas: a primeira violação doeu, mas à décima já quase nem reparou e até continuou a palitar os dentes. Citaria testemunhos de outras escravizadas: “Habituámo-nos àquela rotina. Tornou-se absolutamente normal, como se a vida fosse mesmo assim”. Falaria com uma antiga escravizada sobre este assunto da adaptação e normalização da experiência de viver como escrava sexual, e partilharia connosco a sua resposta: “Jose, I think you opened a can of worms. The problem is only that your readership will not be used to reading this type of gruesome normality. I agree that, the first time, I was horrified. Later on, it was part of the scenery.” José Rodrigues dos Santos diria ainda com toda a desenvoltura, falando das mulheres capturadas por um gang para serem usadas como prostitutas: "Importa explicar que a adaptabilidade dos seres humanos a condições adversas é um tema muito estudado na psicologia e na biologia, e dado como amplamente documentado. Aliás, a teoria da evolução assenta justamente no conceito de adaptabilidade e negar a adaptabilidade natural dos seres vivos é negar o próprio evolucionismo. Não sobrevive quem é mais forte, sobrevive quem se adapta melhor. É próprio dos seres vivos, incluindo os seres humanos, adaptarem-se às condições adversas que enfrentam, e [as mulheres que foram feitas escravas sexuais] não constituem, como é óbvio, exceção.
Nada do que José Rodrigues dos Santos diz aqui é mentira. Ninguém põe em causa que as mulheres a viver nestas condições se vejam obrigadas a arranjar estratégias psicológicas para conseguir sobreviver numa situação de crueldade omnipresente.
O que se critica é a leveza do discurso, e a total insensibilidade perante o horror de que está a falar. O que se critica é omitir do seu discurso sobre "adaptação" e "normalidade" as sequelas gravíssimas que nunca mais deixarão de atormentar aquelas pessoas.
Passando para o plano original no qual aquele discurso é emitido, o do Holocausto, o que se critica é a indecência de falar nestes termos de um sofrimento que está muito para além do que podemos imaginar, provocado por um máquina genocida tão eficiente quanto sádica, à qual se chama, não por acaso, "mal absoluto".
[ ADENDA: várias horas depois de escrever este post, ao ler o capítulo "Questões éticas na Psicologia do Trauma" do livro Posttraumatische Belastungsstörungen, de Andreas Maercker, dei-me finalmente conta do cinismo subjacente ao discurso de José Rodrigues dos Santos sobre a capacidade de adaptação das pessoas a condições adversas ser fundamental para a sobrevivência. Afirmar isso equivale a fazer victim blaming das pessoas que foram parar às câmaras de gás, ou morreram de frio, ou de tifo, ou de fome, ou de exaustão, ou a tiro, ou de uma das tantas formas que havia em Auschwitz-Birkenau para (e agora cito aquele famoso o nazi humanista) "acabar com os judeus". ]
Chegados aqui, pergunto: que elementos de ódio, bullying, intimidação e desinformação encontraram no modo como argumentei?
Este post já vai muito longo. Mas tenho de partilhar o que Luísa Semedo escreveu (aqui) sobre aquilo a que José Rodrigues dos Santos chama "a normalidade nos campos de concentração":
"JRS insiste na capacidade do ser humano a adaptar-se ao horror como algo de positivo. Mas a adaptação ao horror não pode ser vista dessa forma, não significa de todo que o horror já não faz mal, a verdade é que o cérebro acaba por ficar como se estivesse anestesiado, mais nada, por vezes há até um desdobramento de personalidade.
A prova de que não existe verdadeira adaptação benigna são as síndromes pós-traumáticas, os pesadelos que duram anos, a inadaptação à nova vida, inclusive em torcionários forçados, como por exemplo no caso das crianças-soldado, existe vasta literatura sobre este tema como o interessante trabalho de Françoise Sironi ou de Mouzayan Osseiran-Houbballah. Em « Une saison de machettes » sobre o genocídio do Rwanda Jean Hatzfeld escreve “Um homem pode acostumar-se a matar, se ele matar sem parar. Ele pode até transformar-se num animal sem prestar atenção. " A verdade é esta, a adaptação não é mais do que a humanidade em suspenso de forma momentânea ou perene.
Portanto esta adaptação que JRS vê como algo de positivo, e que mais uma vez lhe serve para minimizar o sofrimento dos prisoneiros destrói vidas até anos depois.
Na entrevista à RTP cita Werner Reich reduzindo a sua experiência a “a gente vai-se habituando” ou “não era muito pior do que isto”, mas WR já deu várias entrevistas, já deu várias palestras em escolas e o teor do seu testemunho é outro:
“Ainda consigo ouvir os gritos e cheirar os corpos que queimam.”
“Amávamos qualquer coisa que nos pudesse afastar de Auschwitz por um momento, que nos pudesse tirar das nossas mentes, das nossas memórias e do horror ao nosso redor.”
“Eu estava numa cela no 3.º piso, olhei pela janela, para o pátio e vi a minha mãe com outras mulheres. Nunca mais a vi.”
“Tudo o que sei é que ela morreu num campo, não quis ir mais longe. Gosto de acreditar que ela morreu de ataque cardíaco, numa cela. Vi o pior do pior e não quero colocá-la nessas situações”
“Foi levado para uma cela, onde foi espancado, por um homem “que se divertia” a fazê-lo chorar. “
“Às vezes, a plataforma de cima partia e caía no segundo nível e este partia e caía no de baixo e às vezes estas pessoas morriam esmagadas. Havia constantemente urina e fezes a cair de um nível para o outro”. A fraquíssima alimentação — pouco mais que água escura com batatas ou nabos a boiar e um bocado de pão de manhã e à noite, cerca de 400 calorias por dia — provocava desinteria, fraqueza e morte.”
“Se virem algo errado, falem. Se não dizem nada, porque acham que não vos diz respeito, estão enganados”
Existe um livro ilustrado de 2014 de Kathy Kacer com o mesmo título do livro de JRS e que conta a história de Werner Reich e de Herr Levin, o mesmo personagem do livro de JRS. Kathy Kacer é uma ex-psicóloga, que se dedica a falar da memória do Holocausto a crianças e adultos porque é filha de sobreviventes do Holocausto tendo já escrito mais de 20 livros sobre o tema e que diz o seguinte “A cada vez que lembras esta história, e que falas nela, estás a honrar alguém que viveu ou que possivelmente morreu nesse tempo.”
JRS parece não ter compreendido que há temas que requerem que o autor se ponha ao seu serviço e não o contrário."
8 comentários:
Bem me parecia que este não devia ser assunto a tratar pelo José Rodrigues dos Santos.
Bem haja, Helena Pinto pela paciência. E os meus melhores cumprimentos a Irene Pimentel e Luísa Semedo.
jj. amarante,
Isso mesmo.
João Soares,
obrigada.
E assim lavo a alma... Muito grata, por hoje e por ontem.
Parabéns pelo texto!
Copio para aqui um comentário que por lapso foi publicado noutro post:
Blogger Jaime Santos disse...
Continuo na minha, Helena Araújo. Rodrigues dos Santos é uma figura absolutamente menor, sem qualquer profundidade e conhecimento da História.
Não fosse a utilidade desta polémica para esclarecer as pessoas sobre o que realmente foi o Holocausto (obrigado a si também por fazer isto) e mais valeria ignorá-lo, muito embora seja necessário lembrar que há quem o leia e o leve a sério.
Tive em tempos que fazer uma cara muito séria quando alguém me explicava o tema de um dos seus livros de aventuras, que eu sabia ser um completo disparate...
E agora, com a dita polémica, ele não mostra sequer respeito pela memória das vítimas.
Como muitos outros que resolveram escrever sobre este tema sem o conhecer profundamente, quando verificou que tinha metido o pé na argola, em vez de fazer o que qualquer pessoa decente faria, que seria pedir desculpa e dizer simplesmente que tinha proferido uma frase muito infeliz numa entrevista, mas que não se revia no que disse, resolveu fazer um double-down e decidiu meter-se ao barulho com pessoas como Irene Pimentel que, essas sim, sabem do que falam. Deve ser porque é um 'homem confiante e que acredita em si e nas suas capacidades'...
Teve sorte de viver num País onde o tema não provoca, infelizmente, comoção pública, o que revela a nossa ignorância não apenas em relação à História do sec. XX, como também ao anti-semitismo que permeia a nossa própria cultura. Fosse ele alemão ou americano e não saberia onde se meter...
Não sei se ele caminha num plano inclinado em relação ao Holocausto, parece-me que caminha num plano inclinado relativamente a perder a pouca credibilidade que tem como jornalista (porque como escritor tem zero).
Agora, a pergunta que coloca é muito bem colocada. Como é que a RTP decide entrevistar um dos seus, concedendo-lhe publicidade gratuita, sobre um tema que ele não domina? Qual é o interesse jornalístico, histórico, etc, em entrevistar um mau escritor que se põe a debitar disparates?
Já sabemos que os telejornais das televisões privadas incluem 'reportagens' às novas produções desses canais, mas isto é de uma escala diferente, pode no limite indiciar um favorecimento pessoal.
Infelizmente, a 'democracia' das redes sociais, e a popularidade de autores como JRS já não permite uma coisa muito simples, mas que de certeza não constitui bullying, porque é o objecto da crítica literária desde há muito.
Quando algo não passa de 'pintura de rabo-de-gato' (apetecia-me escrever outra coisa) deve ser denunciado como tal...
E se os livros de JRS forem finalmente expostos por aquilo que são, pelo menos quem se quiser dar ao trabalho saberá que não passam de pura ficção... Como as tretas do Dan Brown, só que para bastante pior...
14 dezembro, 2020 02:28
Jaime Santos está absolutamente certo.
Jaime Santos está absolutamente certo.
Parabéns pelo texto, Helena
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