07 dezembro 2020

era uma vez o dia em que os mentores do Holocausto caíram em si e tiveram preocupações humanitárias...

Será que me podem fazer um favor? Vejam este vídeo e digam-me se também vos provoca ataques de riso incontroláveis. Que me perdoem os judeus, e todas as pessoas que abordam o horror do Holocausto com seriedade e sentido de responsabilidade, mas não consigo parar de rir - e é por causa do tom assertivo e do ar cândido (oh, aquela cara de menino da primeira classe muito orgulhoso por já saber contar até vinte e dois) com que José Rodrigues dos Santos diz isto:

"A certa altura, há alguém que diz: - Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?"

A minha primeira pergunta é factual: quem é que disse isso, caro José Rodrigues dos Santos? Em que acta de que reunião, em que carta é que isso está documentado? Encontrou esse momento na biografia de quem? Ou será que essa frase faz parte do seu próximo livro de ficção? Adivinho possíveis títulos: "O Comandante Compassivo do Gueto de Varsóvia", "H de Hitler, e Também de Humanismo", "Kommandatur de Auschwitz: Afinal o Padre Américo Tinha Razão!"

A minha segunda pergunta é ética: como é possível falar da máquina de exterminação de um povo com a leveza de um "oh, se é para morrer..."? Esta frase, até numa peça de humor seria uma ousadia - quanto mais numa entrevista para promover um livro que explora o filão de Auschwitz! Mas fiquemos apenas pela História. Em nada do que tenho lido sobre o Holocausto consta a ideia de "motivos humanitários". Pelo contrário: o primeiro passo para a catástrofe foi negar aos judeus a sua condição de seres humanos, e reclassificá-los, designando-os como sub-humanos nocivos, uma praga animal que exigia uma desinfestação, um tumor maligno que era preciso arrancar. Não me consta que de repente em 1941 algum nazi do topo da hierarquia se tenha dado conta de que afinal estavam a tratar com seres humanos. Mas posso estar enganada - nesse caso, agradeço que me informem dizendo quem foi, e quando, e em que termos.

Em 1919 Hitler já falava em "afastar os judeus do espaço alemão". Em 1923 deu uma entrevista a um jornal catalão na qual falava em exterminar os judeus, sendo que "o ideal seria matá-los todos numa noite só". O Mein Kampf, escrito dois anos depois, não deixa qualquer dúvida sobre as intenções de eliminar o povo judeu. As perseguições a esse povo começaram logo em 1933 após a tomada do poder pelos nazis. Seis anos mais tarde, a invasão da Polónia serviu ao regime nazi para experimentar diversos métodos para a máquina de extermínio: execuções em massa, gaseamentos, internamento em guetos com racionamento dos alimentos destinado a - literal e deliberadamente - matar de fome os seus habitantes. A passagem para o gaseamento em larga escala foi a maneira que os nazis encontraram de levar a cabo os seus planos de extermínio daquele povo da forma mais barata possível, e evitarem também o surgimento de revoltas entre os soldados, muitos dos quais tinham obviamente dificuldade em cumprir as ordens de matar a tiro bebés, crianças, mulheres e velhos.

Nazis com preocupações de tratar os judeus de forma humana? Só mesmo na imaginação do José Rodrigues dos Santos. Esta peça de "humor junto ao calabouço", que os judeus contavam nessa época trágica, mostra uma realidade completamente diferente:

Membros da Gestapo preparam-se para executar um grupo aleatório de judeus, mas nesse dia o comandante da SS está bem-disposto e diz a um deles: - Você tem um ar muito ariano. Por isso, vou-lhe dar uma oportunidade. Tenho um olho de vidro que é impossível de reconhecer. Se conseguir adivinhar qual é, deixo-o ir embora. Sem hesitar, o judeu responde: - O de vidro é o olho direito! - Como é que adivinhou? - É porque esse tem uma expressão mais humana.

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Não que a actual Alemanha seja a medida de todas as coisas, mas este espalhanço estrondoso do José Rodrigues dos Santos dava direito a despedimento imediato em qualquer canal da televisão alemã, mesmo que, muito provavelmente, não fosse objecto de um processo jurídico (ao contrário da negação do Holocausto, adoçar a imagem do regime nazi não é considerado crime na Alemanha).

Em 2007, Eva Herman perdeu o seu emprego numa televisão pública por não ter sabido exprimir-se bem sobre uma questão que envolvia o regime nazi e os valores da família e da maternidade. A televisão entendeu que Eva Herman lhe estava a criar graves problemas de imagem. Herman recorreu contra o despedimento e contra o modo como certos órgãos de informação noticiaram o caso, os processos foram fazendo a sua carreira pelos tribunais, e o despedimento foi considerado como justificado. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos recusou ocupar-se do assunto. Num talkshow que um colega organizou para lhe dar a oportunidade de se explicar, e após um longo debate no qual não conseguiu apresentar as suas razões de forma sólida, desabafou "o que aprendi com isto é que é arriscado falar da História alemã" (aqui, em alemão). O moderador pediu-lhe que saísse da sala imediatamente. Mas o aviso pode ser útil a José Rodrigues dos Santos, de colega para colega: é arriscado falar da História alemã. Sobretudo quando não se percebe muito desse assunto, acrescentaria eu.


9 comentários:

Alexandre Cotovio Martins disse...

JRS pode ter ido buscar essa "informação" a Eichmann em Jerusalém, de H. Arendt, ou a outros locais que desconheço. Hitler, em 39, terá começado por elaborar decreto que incorpora a ideia de "misericórdia". O que é facto é que nunca, a meu ver, a poderia (deveria) enunciar daquela forma, mormente porque, tratando-se de uma identificada mentira, sonegação da verdade, etc., não pode ser apresentada com a seriedade que o tema - e o meio - exige daquela forma. Dar uma informação desta ordem de forma truncada (ainda que por inépcia) é, no mínimo, grave, parece-me a mim.

Helena Araújo disse...

Alexandre,
O que é que Hannah Arendt diz sobre as motivações humanitárias para o uso do gás?

Jaime Santos disse...

Bem, eu já desconfiava que Rodrigues dos Santos, além de mau escritor, também não regulava lá muito bem. Quem como ele escreve romances de aeroporto e depois se leva tremendamente a sério só pode ter o compasso moral algo desacertado... Não compreende que não e um escritor e sim um autor de obras de entretenimento...

Agora confirma-se. Cometer genocídio por razões humanitárias? Mesmo alguém muito ignorante não diria algo que desafia a lógica. O ato humanitário por excelência é o salvamento da vida humana.

Admite-se, porventura, e no limite de alguém que padeça de doença incurável e em sofrimento extremo, a eutanásia, e sabe Deus os problemas éticos que levanta.

Os justos entre as nações são precisamente aqueles que salvaram judeus, não os que os assassinaram...

Que me lembre do livro de Arendt, Eichmann nunca tentou justificar as mortes dizendo que estava a cometer atos humanitários e simplesmente que não passava de um burocrata que se limitava a seguir ordens, logo a culpa era dos outros, porque ele não tinha que ter consciência moral. Arendt disse que era simplesmente por isso que ele tinha que ser enforcado...

Lembro-me bem da Eva Hermann, embora eu costumasse seguir os jornais da ARD ou da ZDF. Suspeito que, infelizmente, não se pode fazer com Rodrigues dos Santos o mesmo que fizeram com ela, porque senão o Governo 'xuxalista' era logo acusado de interferência na RTP e coisa e tal...

Mas era um ato de higiene pública. Poderia continuar a escrever e a debitar os disparates do costumes, sem provocar embaraços à empresa pública de televisão...

Manuel Galvão disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
jj.amarante disse...

Eu fui ver a Grande Entrevista mais para ver a cara do Vítor Gonçalves quando o J.Rodrigues do Santos fez aquela afirmação e recomendo que se veja a entrevista toda, ele estava a explicar o plano inclinado que pode levar ao mal absoluto e não a defender a tese absurda das boas intenções dos nazis.

Alexandre Cotovio Martins disse...

Peço desculpa, só agora voltei aqui e também só agora li a pergunta. Hannah Arendt diz, obviamente, o completo inverso do que JRS pretende: apresenta tudo isso como eufemismo, estratégia destinada a enganar e camuflar e insere-o num contexto muito mais amplo, incluindo, como pano de fundo, as decisões das cúpulas nazis ou a competição entre departamentos chefiados por Himmler. Mas que fazer? O "nosso" JRS sabe mais, aparentemente, para muitos; por minha parte, tenho dúvidas sobre se leu, sequer Arendt.

Helena Araújo disse...

Alexandre, obrigada pela explicação. :)
As coisas eram obviamente muito mais complexas. Mas era pena que a complexidade dos factos estragasse uma boa ficção...

Helena Araújo disse...

Jaime,
sobre os motivos humanitários, nem vale a pena falar.
Sobre os apresentadores dos noticiários da televisão pública (que são os únicos que vejo): uma das características comuns a todos eles é a combinação de um enorme manancial de cultura/informação com princípios éticos sólidos. Percebe-se que uns são mais de esquerda e outros são mais conservadores, mas todos têm consciência da sua responsabilidade e da sua obrigação de serem permanentemente testemunhos de decência.

Helena Araújo disse...

JJ Amarante,
também vi a entrevista toda. Chocou-me especialmente o tom de fait divers com que ele fala dos responsáveis e das vítimas do mal absoluto.
Qualquer pessoa normal que quisesse explicar o plano inclinado tirava a menção às preocupações humanitárias. A evolução das formas escolhidas para matar judeus desembocaram no gás porque era a maneira mais eficiente e barata que encontraram para "resolver o problema".
Porque é que JRS escolheu falar do "plano inclinado" daquela maneira airosa e leve, e pôr na mesa a extraordinária tese de que foram motivações humanitárias que fizeram o "plano inclinado" avançar para o gás?

No entanto, isto não foi um plano inclinado, e JRS tinha obrigação de o saber. Isto foi a evolução em direcção a um objectivo estabelecido há muito tempo. Hitler já em 1923, por exemplo - formulou abertamente a ideia de matar todos os judeus.