26 setembro 2020

como os nossos avós

Durante muito tempo olhava para a Alemanha dos anos vinte e trinta do século passado sem conseguir compreender como foi possível um povo tão culto e educado ter permitido e mesmo participado na ascensão do nazismo. Infelizmente, os tempos que correm estão a dar a resposta: a Democracia pode sucumbir a ataques graves em qualquer região do globo e em qualquer época. Até no Portugal de 2020 se repetem com todo o desplante desvios como aqueles que, há cem anos, foram testemunhados pelos nossos avós. E - hoje como então - a mesma perplexidade, a mesma sensação de impotência para proteger o sistema democrático destes ataques vergonhosos. Uma breve compilação:

- Um líder político serve-se do discurso de ódio contra uma minoria para conquistar espaço de poder. 

- No Parlamento, um deputado propõe a criação de campos de reclusão especiais para as pessoas de uma minoria étnica.   

- Num partido político leva-se a votação uma moção que propõe a mutilação feminina como forma de punição contra determinado comportamento das mulheres.
(Podem dizer que "só" tiveram x% de votos a favor - não interessa: há propostas que pura e simplesmente não podem ter lugar no nosso sistema democrático. A mutilação feminina como punição por parte do Estado é uma delas.) 

- Um deputado usa a difamação como arma - no caso, contra o Paulo Pedroso, que foi vítima de uma hábil manobra de assassínio de carácter, cujos efeitos permanecem apesar de o sistema de Justiça ter concluído que não havia o menor motivo para o inculpar - e para isso não hesita em arrastar para a lama um dos esteios do sistema democrático, sem sequer apresentar provas do que afirma.   

- O jornalismo, esse, em vez de titular na primeira página "André Ventura provoca crise institucional na Democracia portuguesa - deputado não respeita o princípio da separação de poderes", perde o rumo e a responsabilidade, e vai noticiando como quem comenta episódios de uma telenovela mexicana, "fulano afirmou", "sicrana respondeu", "beltrano tomou uma posição". 

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O Lutz Brückelmann dizia há uns anos, durante a campanha eleitoral que levou à eleição de Trump, que o seu sucesso se devia à sua capacidade de "libertar o filho da puta que existe em cada um de nós". André Ventura segue a mesma receita: a sua estratégia para conquistar o poder consiste na legitimação e validação dos piores instintos que existem dentro dos portugueses. No caso do ataque ao Paulo Pedroso, em vez de assumir a sua responsabilidade de deputado da Nação e a consequente atitude de respeito pela ordem democrática, faz exactamente o contrário: desrespeita o poder judicial e destrói a sua legitimidade, rejeitando - sem provas - uma decisão daquele. 

O ataque deliberado às instituições para as descredibilizar, a par da legitimação e da banalização do ódio, é do pior que pode acontecer a uma sociedade democrática. De cada vez que o André Ventura abre a boca, mais alguns portugueses ganham coragem para assumir o seu racismo, a sua xenofobia, o seu ódio às mulheres e às minorias, o seu absoluto desprezo pelo funcionamento das instituições. 

Isto é connosco, isto é contra nós. Por muito mau que o sistema democrático português possa ser, a alternativa que o André Ventura traz é incomparavelmente pior.

Quem quererá viver num país cujos governantes instalam uma ordem na qual as redes sociais e os meios de comunicação da sarjeta se substituem aos tribunais? Num país onde o Estado prevê a possibilidade de castrar, mutilar e matar, mas o sistema judicial não é suficientemente forte para proteger os cidadãos do extremismo do governo e das turbas? Num país onde há campos de concentração para minorias (por etnia, por orientação sexual, por nacionalidade)?
O Portugal de André Ventura seria assim. 

Repito: por muito mau que o sistema democrático português possa ser, alternativas como as do oportunista André Ventura são incomparavelmente piores.
O caminho é corrigir o que temos, em vez de deitar fora o bebé com a água do banho. Já aconteceu há cem anos na Alemanha, e o resultado foi o que se viu. 

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Ah, e para os sectores da direita democrática que se andam a encostar ao André Ventura e às suas manhosas estratégias de poder, deixo aqui um recado antigo, da revista londrina Punch, em 8 de Fevereiro de 1933:

Encontrei a imagem num artigo do Frankfurter Allgemeine Zeitung, sobre os media e o fracasso da República de Weimar, que diz o seguinte: 
"O exemplo da República de Weimar mostra que uma democracia não tem de falhar pelo facto de se confrontar com ventos adversos. Só falha se não puder contar com ventos favoráveis por parte dos políticos, dos meios de comunicação social e dos cidadãos." 
O artigo é em alemão, e não vou traduzir. Afinal de contas, bem sei que Cavaco Silva, Passos Coelho, D. Manuel Clemente e outros artistas do mesmo quilate não lêem este blogue. 


3 comentários:

Gato Aurélio disse...

...a maleita é semelhante em toda a Europa. Os responsáveis somos todos os que, não votando, ajudam esta palhaçada séria :-(
https://gatoaurelio.blogspot.com/2020/09/esta-terra-e-de-quem.html?m=1

Manuela disse...

Helena gosto tanto da forma como transmite as suas e minhas crenças. Partilho sempre os seus posts com quem como nós não abdica da democracia e não acredita que vai ficar tudo bem se nos calarmos.

Unknown disse...

E muito necessário haver quem dê vós aquilo que pensamos, não deve haver espaço para o lado mau da humanidade.