18 junho 2020

o caso da estátua do Padre António Vieira


No embalo da actual onda internacional de contestação ao racismo, o boneco do Padre António Vieira em Lisboa foi uma das estátuas vandalizadas. Li algumas das manifestação de repúdio deste acto, que me suscitam os seguintes comentários:


1. Dizem: "quem vandalizou aquela estátua não sabe quem era o Padre António Vieira". 
Eu diria que quem fez aquela estátua é que não sabe quem é o Padre António Vieira no século XXI, digamos assim. Não lembra ao diabo erigir em Lisboa, em 2017 - repito: em 2017 - uma estátua de um europeu erguendo uma cruz por cima da cabeça de criancinhas indígenas.
Como é possível que, das tantas opções para homenagear o melhor do Padre António Vieira, com uma leitura actual da importância da figura histórica e com uma linguagem estética contemporânea - só para ter uma ideia, veja-se o olhar desmedido e perplexo do D. Sebastião que o escultor João Cutileiro nos deu em 1973, ainda durante a ditadura -, como é possível, dizia, que tenham optado por fazer aquela espécie de bibelô de praça de aldeia?
Pergunto ainda: as pessoas que abriram o concurso para essa estátua e atribuíram o primeiro prémio não estavam informadas sobre um dos mais importantes debates contemporâneos? Não lhes passou pela cabeça que erguer na Lisboa do século XXI uma estátua como esta - e não me refiro à homenagem ao Padre António Vieira, mas literalmente ao boneco de um europeu rodeado de indiozinhos e erguendo uma cruz - podia ser entendido como um claro posicionamento no debate sobre o colonialismo português?

Tal como foi feita, a estátua não parece uma homenagem, mas o aproveitamento desse pretexto para fazer um braço-de-ferro com o século XXI. Ninguém merece, e muito menos o Padre António Vieira.


2. Criticam esta pichagem como um ataque à sociedade portuguesa 
Uma estátua numa praça pública é uma afirmação do que é importante para uma sociedade - mas este boneco concreto está longe de ser uma representação consensual da importância do Padre António Vieira para o Portugal: nem no seu próprio tempo, nem no nosso. Em primeiro lugar, porque "missionário dos índios" não é o que o eleva acima dos outros do seu tempo; em segundo lugar, porque o que o Portugal do século XXI mais aprecia no Padre António Vieira não é a sua faceta de missionário de índios; finalmente, porque erguer em 2017 numa praça da capital uma estátua que afirma o orgulho que Portugal tem por um missionário colonialista - e é isso que aquela estátua representa - é algo que envergonha o nosso país perante os olhos de visitantes menos rodados nos bancos da escola do Estado Novo. 
Não há um mínimo de consenso - muito pelo contrário: aquele boneco é a imposição à cidade de uma opinião retrógrada expressa em bronze. Pelo que se poderia considerar esta pichagem como a manifestação de uma opinião de sinal contrário. Ou seja: uma reacção ao gesto prepotente de quem há três anos impôs no espaço público português uma visão ultrapassada da História universal e da responsabilidade dos países colonizadores europeus no actual estado do mundo.


3. Falam em "ditaduras ideológicas" e chamam "fanáticos" a quem vandalizou a estátua. 
Pode ser. Mas tão fanático e ditador ideológico será quem pintou "descoloniza" naquela representação do Padre António Vieira, quanto quem impôs aquele boneco anacrónico à cidade de Lisboa e à imagem que Portugal quer dar de si próprio ao mundo. 


4. Dizem: "derrubar e pichar estátuas é ofender a História"
O que é um belo exercício sobre os limites da liberdade de expressão.
Para já, pergunto: pichar aquela estátua é ofender a História de quem?
Mais: se defendemos "o direito a ofender" no âmbito da defesa da liberdade de expressão, como podemos impor a proibição de ofender a nossa versão da História do mundo? 
Porque é que se pode dizer tudo o que apetece, ao abrigo da liberdade de expressão, mas não se pode pichar uma estátua? É apenas para não danificar o material, se custou bom dinheiro aos contribuintes? Ou é porque nos incomoda ser confrontados com a opinião que ofende os nossos símbolos?
Em suma: será que, afinal, há limites para o "direito a ofender"?


5. Dizem: "esta gente ainda vai acabar a dar Portugal aos árabes"

Quanto a isso, estou descansada: já cá estão. Já cá estamos. Ou alguém pensa que a nossa pele trigueira é herança dos visigodos e dos suevos?


6. Dizem: "vamos aceitar que nos destruam todas as estátuas?"

Se me é permitido brincar: todas, todas, não. Só as que for preciso...

Agora, a sério:

- É fundamental não deixar que se instale na nossa sociedade uma prática de facto consumado. Nem na realização das obras, nem na sua destruição. Serve para a bonecada colonialista que escolheram para representar o Padre António Vieira, serve para o conceito "Museu dos Descobrimentos", serve para um relicário do Salazar em Santa Comba, serve para esculturas de preço incompreensível encomendadas por um município qualquer. Em casos sensíveis como estes, enquanto não houver um mínimo de consenso não se faz (estou-me a lembrar do Memorial para os Sinti e Roma vítimas do nazismo, em Berlim, cuja obra se atrasou imenso porque não havia consenso sobre a inclusão da palavra "cigano" na placa explicativa).

- Esta querela da estátua não é mais que um campo de batalha por substituição, e está a distrair-nos do que é verdadeiramente importante. Entre outros: ouvir as pessoas, sensibilizar para as dificuldades da vida das minorias, encarar de frente a tralha ideológica que o Estado Novo nos deixou de herança.

- Mesmo reforçando e aprofundando o diálogo e o consenso democrático, haverá sempre algum extremista que decidirá afirmar a sua posição contra a da sociedade democrática, vandalizando uma estátua de algum famoso, uma obra de arte, um mural ou um Centro de Acolhimento de Refugiados. Que esses incidentes não nos desviem do nosso caminho, que é no sentido do fortalecimento do sistema  e do diálogo democráticos.


8 comentários:

Jaime Santos disse...

Sobre a questão da necessidade de nos focarmos no essencial, completamente de acordo, chamo aqui à colação a opinião de Jonathan Freedland sobre isto:

https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/jun/12/boris-johnson-statue-tweets-donald-trump-prime-minister-george-floyd-culture-war

A Direita reaccionária sente-se mal no terreno da luta pela Justiça, prefere de longe levar a discussão para o lado da guerra cultural. Não lhe façamos a vontade.

Isto dito, importa esclarecer que mau grado este risco, estes protestos têm pelo menos a virtude não de 'destruir a nossa História', mas pelo contrário de ajudar a começar a destruir os mitos que gostamos de fazer passar por ela.

Essa História é bem mais complexa, triste e interessante do que eles.

Susan Neiman, judia americana residente em Berlim, autora de um livro notável sobre o mal no pensamento moderno, em que ela analisa em paralelo o mal moral de Auschwitz e o mal físico da destruição de Lisboa em 1755, escreveu um belíssimo artigo no Guardian em que compara a atitude de diversos povos em relação à sua História:

https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/jun/13/germany-confronted-racist-legacy-britain-us

A proximidade temporal do Holocausto, conjugada com a derrota e a destruição da Alemanha em 1945, levaram os alemães a olhar para a sua História como um sério aviso relativamente ao que pode acontecer quando o Poder adquire características demenciais.

Citando Neil MacGregor, ela diz que enquanto os alemães usam a História para pensar sobre um futuro incerto, os Britânicos a usam para se consolar por um presente menos glorioso do que o Passado.

Parece, digo eu, que não são os únicos...

Helena Araújo disse...

Obrigada pelo comentário. Muito bom!

" R y k @ r d o " disse...

Existe quem diga que o Padre António Vieira nunca se pronunciou de forma clara e veemente contra a escravidão.
Defendeu os índios? Sim. Condenou o racismo? Dizem que não. Daí, penso eu, ter sido a estátua vandalizada.

Vandalizar estátuas que, de uma forma ou outra, fazem para da história da humanidade não me parece ser uma boa opção. Mas como diz o ditado: "" Cada cabeça, a sua sentença""

São assim os contrastes da vida. Existem sempre uma "alma" em desacordo com muitas outras.

Tenha um bom dia
Cumprimentos

Anónimo disse...

Independentemente dos motivos e do contexto, temos sempre de nos lembrar Camus quando se referia ao extremismo (ou melhor, terrorismo): Albert Camus, Premio Nobel de Literatura en 1957, criticó abiertamente el totalitarismo, se puso al servicio de quienes “padecían” la historia y defendió la vida de cualquier ser humano. Desde su punto de vista, sacrificar a una sola víctima en el altar del progreso no significaba avanzar hacia la utopía, sino justificar nuevas víctimas en el futuro. “En política”, sentenció, “son los medios los que deben justificar el fin”. Sartre nunca se lo perdonó.
Estas reflexões devem fazer-nos pensar que lutar contra o racismo não se faz destruindo e fomentando mais rancores, mas invertendo a espiral cultural que a ele conduz. Isso não passa por abordagens mais ou menos niilistas, mas sim por um grande (talvez infelizmente lento) processo de mudança e evolução dos paradigmas culturais. Como o conseguir tem de ser o principal foco de reflexão e não, parece-me, responder à destruição (de vidas, culturas e história) com comportamentos simétricos. É um desafio duríssimo e fascinante, mas temos de o iniciar, porque de outro modo não conseguiremos inverter estes paradigmas socio-culturais e particularmente preconceituosos que têm justificado os padrões de violência racista seja ela onde fôr.
Os meus cumprimentos pelo excelente Blog que sigo há muito com o maior prazer
João Paulo Fernandes

Anónimo disse...

No meu comentário agora enviado assinei o meu nome mas não puz o meu contacto: jptaf@netcabo.pt
De novo os meus cumprimentos
João Paulo Fernandes

Helena Araújo disse...

João Paulo Fernandes, obrigada por lembrar Camus neste contexto.
Estava a lê-lo e a pensar que quem pintou a estátua de vermelho a melhorou imenso ao pintar aqueles corações no peito dos miúdos indígenas. Apontou o que é realmente importante: a vida, os sentimentos, a dignidade dos seres humanos.
Pensei também na razão para haver missionários hoje em dia: dou especialmente valor àqueles que levam a outras culturas não a cruz de Cristo, mas o seu amor. "Vede como eles se amam" devia ser o alfa e o ómega da transmissão da fé em Cristo.
Quanto aos comportamentos simétricos, repito a frase de um português que vive em Angola e às vezes é vítima desses tais comportamentos simétricos: "lá vem a factura de quinhentos anos". Se quero mudar alguma coisa, tenho de mudar em mim. Exigir dos outros - esses que ao longo dos séculos foram vitimados pelo meu país num processo que contribuiu para a desigualdade da riqueza entre os países da qual nós ainda hoje beneficiamos - exigir deles, dizia, a grandeza de passar um pano por cima do passado, e recomeçar o jogo com cartas não marcadas, é cinismo.

João Leitão disse...

Bom dia Helena
Permita que a trate assim.

Estou absolutamente de acordo com o sue comentário. Aquela estátua é inenarrável. Ey que vivo em Lisboa nunca tinha olhada para ela. Agora apercebi-me do reaccionarismo e falta de qualidade da mesma.
Aproveito para lhe dizer que é uma delícia seguir os seus comentários.

João Leitão

Helena Araújo disse...

Obrigada, João.
Confesso que precisei de ver aquele coração pintado no peito das crianças nativas para olhar uma segunda vez para o boneco. :)