23 junho 2020

ainda a estátua do Padre António Vieira


Pelo debate que suscitou no facebook, suspeito que não deixei bem claro que a minha crítica não se dirige à homenagem ao Padre António Vieira, mas à faceta dele que escolheram homenagear.

Do tanto que o Padre António Vieira deu ao país e ao mundo, e que podemos eleger como exemplo - inclusivamente para a nossa época -, foram escolher justamente o  papel de missionário, que é o que há de menos interessante nele, e de mais controverso no nosso tempo.

Imaginem que alguém de se lembrava de homenagear o Obama fazendo uma estátua dele a erguer um drone sobre crianças árabes: um drone no centro da homenagem, em vez do foco nos seus discursos, na sua atitude de diálogo internacional, na onda de esperança que trouxe ao mundo, ou no Obamacare. 
Homenagear o Padre António Vieira com uma estátua que o mostra a erguer uma cruz sobre miúdos indígenas é uma escolha tão pouco adequada como a de pôr o Obama a erguer um drone sobre miúdos árabes.  

Dirão: "uma cruz não é uma arma!"
E têm bastante razão. Mas:

(1) Hoje em dias temos muita informação sobre o que aconteceu aos povos indígenas durante o processo de evangelização, e da enorme destruição (de cultura, de organização social, de identidade, de vidas) - mesmo se involuntária - que resultou do sistema de missionação. Talvez as pessoas da época não soubessem e não conseguissem ver o que estavam a fazer, mas nós já o sabemos, e temos obrigação de pensar duas vezes antes de escolher os símbolos que queremos usar nos elogios que fazemos hoje a personagens históricas.

(2) Como muito acertadamente se diz, cada tempo tem os seus próprios valores, e não podemos criticar o que aconteceu há quatro séculos com base nos valores do nosso tempo. Por isso mesmo escolhi a imagem de Obama a erguer um drone: no nosso tempo, muitos vêem os drones dos EUA ("polícia do mundo", "baluarte do sistema democrático") como meios necessários para instalar a paz, a estabilidade e a democracia em regiões que andam necessitadas disso. Independentemente da sua época, o que a cruz do Padre António Vieira e o drone do Obama têm em comum é o sofrimento que uns países levam a outros, iludidos de que estão a agir para o bem do mundo.

Além disso, mesmo havendo muita boa gente que aceita como algo positivo o papel de polícia do mundo que os EUA têm, os actos de violência contra populações civis árabes não são propriamente aquilo que eleva Obama acima da sua época. Do mesmo modo que o seu papel de missionário não é o que tornou o Padre António Vieira uma figura excepcional no seu tempo.  

Só por cinismo alguém se lembraria de homenagear o Obama fazendo-o erguer um drone acima de crianças árabes. Pergunto: o que moveu as pessoas que em 2017 decidiram homenagear o Padre António Vieira mostrando-o a erguer uma cruz acima de crianças indígenas?

"E qual é o problema de levar aos povos a mensagem de Cristo?", perguntarão alguns. 
Responderia que o problema é o método usado. A única maneira que reconheço como válida para transmitir a mensagem de Cristo é o exemplo: "vede como eles se amam". O único testemunho de Cristo que os missionários devem dar é o amor. A divulgação da fé cristã virá por acréscimo, se o testemunho de amor for convincente. Há cristãos que o conseguem fazer de forma admirável. E há outros que não têm em si o amor generoso e incondicional de Cristo, pelo que se limitam a dar uma cruz aos outros. Também por isso é lamentável terem escolhido representar o Padre António Vieira daquela forma: a cruz em vez do olhar atento ao sofrimento dos indígenas e em vez do coração compassivo e cheio de amor. 

(Sim, bem sei que o Padre António Vieira cometeu erros. Mas se só homenagearmos pessoas 100% perfeitas no tempo delas e no nosso, o preço do bronze vai cair a pique. E a nossa auto-estima - tanto pessoal como colectiva - também.)  


8 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Sabendo a irracionalidade e irresponsabilidade existente... deixo-me ficar em silêncio
.
Um dia feliz
Saudações poéticas

josépacheco disse...

Eu acrescentaria apenas (é uma dimensão, não visa refutar a essência do que escreveu) que um padre, crente e sincero, educado no espírito do tempo de António Vieira, só poderia ver a conversão de povos, como um dever, um acto de generosidade e de entrega aos outros. Consigo separar o acto subjectivo (em Vieira, ou em qualquer crente), daquilo que objectivamente a "missão evangelizadora" serviu, e dos desígnios cínicos e de exploração que cumpria. Ou seja, em Vieira, até a missão de levsr Deus aos incréus me parece um acto sincero e moralmente coerente. Concordo, porém, que a estátua é equívoca e presta um mau serviço à pessoa. Temo que identificá-la como símbolo de opressão (pintá-la, destruí-la) seja o princípio de uma confusão perigosa entre as águas.

Jaime Santos disse...

Sendo uma estátua erguida pelo Patriarcado a honrar um clérigo seu, não me repugna a presença da cruz ou do trabalho de missionação de Vieira, que procurou defender os direitos dos índios no Brasil (muito embora pelos vistos não tenha rejeitado a escravização dos africanos).

O que me repugna, em particular dada a época em que foi erigida, a nossa, é a clara menorização das crianças índias, protegidas pelo bom Pai Branco. O índio e o negro na estátua a Theodore Roosevelt, que vai ser retirada, têm muito mais dignidade, que diabo!

Teria sido melhor se se tivessem inspirado no memorial a Las Casas erguido por Sevilha. Nele, todos os intervenientes aparecem em igual nível de dignidade, e Las Casas é mais um mediador do que um salvador, imagem que faz justiça à sua obra... O seu báculo episcopal serve de guia a todos, espanhóis e americanos...

Helena Araújo disse...

josépacheco,
também não me parece aconselhável optar pela destruição desta e de todas as estátuas de alguma figura histórica que não tenha sido perfeita. Mas parece-me muito importante marcar uma posição, porque o espaço público devia ser um lugar de debate prévio e de um certo consenso, e não de braço de ferro. Esta estátua não foi herdada de outros tempos e outros contextos - foi feita há 3 anos.
Quanto aos actos sinceros e moralmente coerentes: os próprios oficiais da Inquisição cabem nessa categoria, não é?
Parece-me bem fazer a homenagem apontando para o que elevou o Padre António Vieira acima do seu tempo. Homenagear hoje sublinhando o seu papel na construção de uma ordem que provocou imenso sofrimento aos outros povos parece-me insensível e anacrónico. Já não somos assim, e não nos fica bem apregoar hoje em praça pública que sentimos orgulho nisso que o nosso país fez aos outros.


Jaime Santos,
A estátua foi paga também com dinheiro dos contribuintes, e está numa praça pública. Se a Igreja quiser honrar os seus clérigos sem ter de se sujeitar a um debate com a sociedade, tem muitos jardins privados onde o pode fazer.

Sobre as outras estátuas: não comento, porque não conheço.

Jaime Santos disse...

Helena, com certeza que o Patriarcado pode e deve dialogar sobre que estátuas ergue no espaço público com dinheiros públicos. Mais, bem gostaria de saber quem foi a pessoa com responsabilidades políticas ou administrativas que autorizou que aquele projecto fosse levado a cabo...

Aqui dou apenas a minha opinião pessoal. Repito, não me repugna que na estátua de um religioso cristão este segure uma cruz, porque Vieira era acima de tudo um Padre Católico. Repugna-me a menorização que é feita das crianças ameríndias, protegidas pelo Bom Pai Branco...

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


Bom, uma homenagem decente a Barack Obama não deveria olvidar que ele capitaneou à distância o homicídio premeditad(íssim)o de um suposto malfeitor que não teve acusação, nem julgamento, nem provas, nem defesa, nem nada de nada semelhante.

Tudo ao vivo e a cores numa tv perto de nós, para ensinar as criancinhas a defender os valores da Liberdade, da Democracia e da Justiça...

Por isso, voto uma estátua do Obama com uma parabólica sobre o corpo despedaçado do Osama Bin Laden.

Helena Araújo disse...

Conde, tens consciência de que essa tua estátua fazia do Obama o herói de todos os americanso, inclusivamente a extrema-direita?

Agora, fora de brincadeiras: há alguma dúvida de que foi o Bin Laden quem preparou o 11 de Setembro? E parece-te que a uma pessoa tão perigosa como esta se aplica o mesmo direito que a um cidadão que não cumpre as regras do seu país?
Concordo inteiramente que não se ande por aí a matar e a torturar qualquer um alegando que se trata de um terrorista. Mas o Bin Laden é outro campeonato.

Helena Araújo disse...

Conde, volto cá porque entretanto me lembrei do desagrado que senti ao ver a cena da execução do Bin Laden. Aquele pessoal à roda da mesa a ver a transmissão da operação em directo. E o Bin Laden a ser morto numa casa cheia de crianças.
Bem sei que o Bin Laden é outro campeonato, e não tenho a menor dúvida de que era ele o poder por trás do 11 de Setembro, mas tudo aquilo fez-me muita impressão.
No entanto, repara na imagem: o Obama tinha um papel de observador naquela cena. No comando estava outro. A encenação está muito bem preparada: um trabalho de grupo. No fundo, é toda a América que está naquela sala, à espera que se faça justiça. Ou vingança.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/ac/Obama_and_Biden_await_updates_on_bin_Laden.jpg