05 maio 2020

renúncia

Por estes dias, por causa da pressão de alguns católicos para "libertar" as missas e o 13 de Maio, tenho-me lembrado muito do maior inimigo dos orçamentos nas obras das casas: o "já agora". Já agora, punha-se ali mais uma janela; já agora, a cozinha ficava melhor com duas bancadas e duas torneiras; já agora, punha-se uma cerca mais bonita no jardim...  tudo óptimas ideias, não fosse o problema das facturas que não se sabe como vão ser pagas.

No caso da crise da covid-19, se o governo ceder às pressões do "já agora", quem paga a factura são os portugueses - e alguns deles pagarão esta factura com a vida.

Bem sei que o "já agora" nasceu das excepções abertas para comemorar o 25 de Abril na Assembleia da República e o 1º de Maio, com participação muito reduzida e controlada. Pessoalmente, compreendo que tenham sido abertas essas duas excepções pelo seu valor simbólico, especialmente importante nestes tempos de ataque às Democracias e de ainda maior fragilização dos direitos laborais. Podemos discutir se era necessário terem decorrido com esse formato, mas acredito que poucos porão em causa a necessidade de dar esses sinais. Quanto àqueles que defendem que a saúde deve estar acima de tudo, respeito a sua opinião, e até agradeço o exemplo que dão, ao fazer sacrifícios pessoais para proteger a saúde de todos.

Aos que criticam o "mau exemplo" dado, pergunto se vêem os portugueses como cidadãos responsáveis, ou como lemingues. A ideia que tenho, vendo de longe, é que o povo português no seu geral tem tido um comportamento de grande maturidade e responsabilidade, e não será por ter havido umas centenas de sindicalistas a fazer uma manifestação muito controlada em Lisboa que todos os outros vão baixar as guardas e passar a viver despreocupadamente, como se o vírus fosse fake news. Mas, aparentemente, há quem tenha opinião contrária a esta, e temos de considerar essa perspectiva com seriedade, nomeadamente quando se põe a questão de reabrir os serviços religiosos comunitários.

Da crítica ao "mau exemplo" passou-se para o argumento dos sentimentos dos portugueses. Se respeitam os sentimentos de uns, têm de respeitar os sentimentos de outros. Nesta nova fase da ofensiva, o argumento brandido por alguns católicos - "então eles têm direito ao 1º de Maio e nós não temos direito ao 13 de Maio? - é-me particularmente penoso. Custa-me ver católicos (vou ser mais clara: custa-me ver cristãos) a usar o discurso da inveja e do ressentimento para atacar o governo, sem qualquer preocupação pelas consequências. Sim: as consequências. Aonde iríamos parar se seguíssemos esta lógica?
Permitam-me uma pequena redução ao absurdo:
Se autorizaram as comemorações do 25 de Abril, têm de autorizar as missas, por uma questão de respeito pelos sentimentos de um grande número de portugueses. E se permitiram o 1º de Maio, têm de autorizar o 13 de Maio, porque na nossa sociedade não pode haver "filhos e enteados". E, já agora, se permitirem o 13 de Maio têm de permitir a Boom (a cada um a sua "religião" e as suas vivências comunitárias! Quem é o Costa para decidir que grupos devem ser privilegiados, e que grupos devem ser ignorados?). E se permitirem as missas, porque é que não autorizam os encontros dos motoqueiros (tanto mais que eles garantem que vão manter as distâncias de segurança e desinfectar os equipamentos todos)? Os motoqueiros estão tristíssimos, e o governo tem de respeitar os sentimentos de todos os grupos. E, já agora, as excursões dos idosos organizadas pelas Juntas de Freguesia...

Pessoalmente, tenho sentido uma certa ambivalência em relação às polémicas desta crise:

- Na discussão sobre as comemorações do 25 de Abril, compreendi tanto as razões dos que defendiam a necessidade de dar um sinal de defesa da Democracia, como as dos que apontavam para o risco a que eram expostos os convidados mais idosos. Acabei por aceitar o argumento da importância simbólica, desde que respeitadas todas as recomendações da DGS.

- No 1º de Maio em Lisboa vi sobretudo o serviço que alguns prestaram à causa comum de afirmação da importância dos trabalhadores. Se muitos deles são obrigados a correr diariamente o risco de andar nos transportes públicos para manterem - de forma anónima e invisível - o país a funcionar, porque é que deviam ficar todos em casa justamente no dia em que nos lembram a sua existência e a importância da sua luta?

- No escândalo do lar de terceira idade onde organizaram a visita pascal, a primeira coisa que me veio a esta minha cabeça de católica minhota foi a importância que na aldeia da minha avó se dava ao rito de beijar a cruz; a seguir, pensei no contexto de solidão insuportável em que aqueles idosos estão a viver devido à covid. Por isso, o meu primeiro impulso foi o de compreender os motivos da direcção do lar. Sublinho: primeiro impulso. Depois caí em mim. E percebi que estava perante um caso prático muito interessante para a discussão da eutanásia, ou seja, o direito de as pessoas em situação desesperada decidirem para si próprias se continua a fazer sentido pagarem um preço tão alto para continuarem vivas. Retirando da equação as pessoas daquele lar que não estavam em condições de decidir, pergunto: que direito temos de impedir as pessoas de decidir em consciência correr o risco de pagar com a vida a alegria de cumprir uma tradição pascal que para elas é importante?

Esta questão também está presente no caso das missas. Como é que a Igreja Católica se posiciona perante a liberdade dos crentes que, para terem acesso à missa, estão dispostos a correr o risco de contrair o vírus? Mais difícil ainda: como é que a Igreja Católica se posiciona perante a liberdade dos crentes que, para terem acesso à missa, estão dispostos a correr o risco de contagiarem outras pessoas, nomeadamente os idosos da família e o pessoal do sistema de saúde que terá de os socorrer?

A questão é tanto mais difícil quanto a Igreja Católica se afirma defensora da vida acima de todos os outros valores. A defesa da vida deveria impor à Igreja que mantivesse as suas casas fechadas até que este vírus deixe de ser uma ameaça mortal.

Não queria estar na pele dos responsáveis eclesiásticos que têm de tomar esta decisão. Mas peço desde já que, se decidirem voltar a abrir as igrejas aos crentes, protejam os sacerdotes mais idosos. Imagino por exemplo o terrível dilema do meu querido Frei Bento, caso se sinta obrigado a celebrar com os fiéis para responder ao pedido destes. 

E menos ainda quereria estar na pele dos governantes, obrigados a "escolher entre a peste e a cólera". Qualquer decisão que tomem tem custos gravíssimos. O ritmo de expansão do vírus obriga a tomar decisões a uma rapidez incompatível com a exigência de recuo e perfeccionismo. Não foi por acaso que a Angela Merkel disse que este é o desafio maior para o seu país desde a segunda guerra mundial - mais difícil ainda que a reunificação alemã. Vale para a Alemanha como vale para todos os outros países. O Macron, por sua vez, insistiu na retórica da guerra. "Nous sommes en guerre", repetia ele na primeira comunicação que fez ao país. Foi muito criticado por isso, mas eu vejo nesta imagem algo de positivo: quando estamos em guerra, somos capazes de esquecer as nossas diferenças e os nossos interesses pessoais para unirmos os esforços na resistência ao inimigo comum.

O nosso inimigo é um vírus mortal para os mais frágeis da nossa sociedade - os idosos e os que têm problemas de saúde. É contra ele que temos de unir esforços. Antes de começar a fazer exigências ao governo para que respeitem determinadas necessidades de determinados grupos, que cada um pergunte à sua consciência se, para ver um desejo seu realizado, está disposto a correr o risco de que outras pessoas morram. 

Este é o tempo em que o amor aos outros toma a forma de renúncia.

Aos católicos que gostariam de alimentar a sua espiritualidade em comunidade e se vêem impedidos disso, e a todos os que, de um modo geral, querem pôr os seus interesses pessoais acima do interesse comum, deixo a lição que tenho aprendido com a crise do aquecimento global e com a crise da covid-19:

Quanto maior o amor aos nossos irmãos, mais fácil, mais livre e mais serena é a renúncia.


2 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Oxalá o bom senso ganhe esse "Já agora".
.
Um dia feliz
Cuide-se

Helena Monteiro disse...

Gostei muito do teu comentário à nossa situação de crise, guerra, medo...sei lá! Tenho sentido muito o que dizes e tenho-me lembrado sobretudo como é importante”caminhar com os sapatos do outro” para tentar perceber e ser mais humano, mais cristão. Obrigada.