12 maio 2020

a banalização da ciganofobia - episódio número não sei quantos

A proposta do André Ventura para criar um regime de confinamento especial para ciganos nunca foi uma proposta séria para ser debatida no Parlamento. Era simplesmente mais uma jogada para dar uma alegria à sua base de apoio, e acelerar a banalização da ciganofobia. A performance no Parlamento dá mais força ao cidadão que se insurge contra "o politicamente correcto que não o deixa dizer as coisas como elas são". É lamentável que os responsáveis do fórum da TSF não tenham percebido isso, e tenham oferecido de mão beijada ao André Ventura um enorme palco para a sua estratégia de banalização da ciganofobia.

Repito o que já muitos disseram: Portugal não tem um problema com ciganos, tem um problema com comportamentos de determinadas pessoas. Não se castiga toda a população de determinada etnia por causa do comportamento de algumas das pessoas que fazem parte desse grupo. Quero deixar isso muito claro, até por um mecanismo de autodefesa: é que se, por exemplo, a Alemanha decide tirar conclusões sobre os portugueses com base nas notícias do Correio da Manhã (onde os portugueses aparecem maioritariamente como indivíduos violentos, toscos e corruptos), o meu futuro na sociedade alemã vai ficar muito dificultado. Não faças aos outros...

Mas: se André Ventura tivesse realmente a intenção de resolver um problema (o alegado desrespeito de determinados grupos pelas regras para contenção da pandemia da covid-19), e não simplesmente habituar os portugueses ainda mais ao discurso racista contra ciganos, gostava de lhe fazer algumas perguntas:

1. Tendo em conta que a Lei é igual para todos, e portanto teria de prever campos de confinamento especial para todos os que desrespeitassem as regras, mandava todos os desrespeitadores para o mesmo campo? Ou separava-os por - sei lá - sexo, localidade, idade, rendimento?

2. O regime de confinamento especial só se aplicaria aos indivíduos que tivessem, de facto, desrespeitado as regras? Ou o Estado (por uma questão de saúde pública, claro, claro...) devia internar toda a família, toda a vizinhança, todos os colegas de trabalho, todos os amigos dos indivíduos desrespeitadores?

3. Esses campos de confinamento seriam improvisados com tendas, ou o Estado devia construir aldeamentos de edifícios pré-fabricados para alojar todas essas pessoas?

4. Se - por mera hipótese distópica - Portugal quisesse pôr-se do lado dos párias da História e criasse um regime de confinamento especial apenas para as pessoas de etnia cigana, quem seria considerado cigano? Um descendente de ciganos completamente assimilado pela cultura dominante em Portugal (seja lá o que isso for) também é cigana? Se um dos progenitores for cigano, o filho é automaticamente cigano? E se for um dos quatro avós? E um dos oito bisavós?
Pergunto, porque o "sangue cigano" é como o "sangue judeu": quantos de "nós" podem garantir com toda a certeza que não têm um antepassado cigano ou judeu?
Pergunto, porque convém que as pessoas tomem consciência desse facto antes de começarem a sonhar com regras para - pensam elas - aplicar aos "outros". 

Em todo o caso: da próxima vez que a TSF quiser organizar um fórum para debater este tipo de questões a que chama "polémicas" - e que de polémicas não têm nada, pelo menos para quem aceita os valores e a ordem legal mais básica do nosso tempo -, de bom grado lhes ofereço uma pergunta para levarem a debate público  que seja menos catastrófica que aquela "faz sentido criar um plano de confinamento especial para a comunidade cigana?"


5 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Existem sempre 3 lados da razão. O meu, o teu, e a razão. André Ventura terá certamente quem o apoie nas suas declarações, que para mim, foram infelizes. Não a bela sem senão.
.
Um dia de Terça-feira muito feliz
Cuide-se

Lúcio Ferro disse...

Tem toda a razão, ventura é um oportunista que cavalga ondas populistas para se auto-promover e, mesmo quando vai de trivela, volta à carga com tópicos da espuma dos dias, vide a história da pena de morte no caso da menina que supostamente foi assassinada pelo pai. O problema é que ventura está a crescer nas sondagens, há uma que até lhe dá 7 por cento das intenções de voto e é complicado desmascará-lo, sobretudo nos tempos de grande pobreza que se avizinham, onde toda a gente irá ralhar e quase ninguém terá razão. A TSF e o correio da manha e outros media promovem-no e a populaça gosta de soluções simples e de bodes expiatórios convenientes. Tudo ito não augura nada de bom. Temos de continuar vigilantes.

Helena Araújo disse...

Como disse, " R y k @ r d o "?
Direitos humanos e direitos constitucionais não são questão de "opinião".

Helena Araújo disse...

Lúcio Ferro, continuar vigilantes não basta. Não basta "ficar a ver" o que acontece: a ascensão do Trump, a ascensão do Bolsonaro, a ascensão dos partidos nacionalistas na Euroa, o Brext...
Nasci numa Europa muito melhor que aquela em que os meus pais nasceram. Uma Europa que trabalhava activamente para construir relações estáveis e pacíficas entre os países, uma Europa de Estado social, uma Europa solidária.
Em que momento é que nos cansámos de lutar para dar aos nossos filhos um mundo melhor? E porquê?

Lúcio Ferro disse...

Boas perguntas. Estou em crer que esse processo se iniciou com a queda do muro de Berlim. Não estou a defender o modelo soviético mas, até este colapsar, as elites financeiras europeias e norte-americanas, o chamado “mundo ocidental”, tinha de dar migalhas a todos os seus cidadãos, porque caso contrário estes viravam-se para o outro lado, o comunismo, que na sua síntese teórica, que não na prática, como depois se verificou, oferecia uma visão muito mais justa do mundo e da sociedade. Daí o ocidente ter tido de fazer concessões, de criar o estado social, de dar direitos ao zé povinho, de lhe pagar condignamente, de consagrar liberdades, de criar sistemas universais de saúde e de educação. Aliás, daí decorreu o quarto pilar da CEE, o da Solidariedade (que tão anda pelas ruas da amargura desde os tempos da UE). Com a queda do comunismo, a elite financeira do lado de cá (quem realmente conta porque é quem controla os media e quem elege os políticos) ficou sem freio, começou a promover uma agenda consumista e acima de tudo individualista. Isso levou a uma crescente atomização social, a um primado de cada um por si, de gozar com coisas de que antes não tinha necessidade alguma, que os mercados tratariam de tudo. Com o tempo e com as crises económicas, esse modelo foi provando as suas contradições e as pessoas começaram a duvidar da democracia: para quê votar se o resultado seria quase sempre o mesmo? Daí até o ressurgimento dos populistas como trump e bolsonaro, que vinham respaldados nesses grupos mediático-financeiros, de soluções fáceis e milagrosas, foi um pulinho. Agora, quanto ao que podemos/devemos fazer, para além de estarmos vigilantes, pois não sei. Numa sociedade totalmente dominada pelo individualismo e pelo consumismo, o que podem cidadãos como nós fazer? Temos dinheiro para lançar um canal de televisão? Um jornal? Dinheiro para pagar a publicade para que esses meios chegassem a um público vasto? Onde estão as cooperativas? Como aquela que fundou a seguir ao 25 de Abril O Jornal? Desapareceram, foram liquidadas; por quem e porquê? Quem é que controla os media? O que é que estes vendem? Fazer o quê? Ação armada? Entrar pelo New York Stock Exchange e abater os gajos todos? Para além de ser dificílimo de executar, o que é que isso adiantaria, fora a morte de uns quantos inocentes? Sermos depois abatidos e para sempre carregarmos o anátema de sermos terroristas? Transformar os mercados em mártires para que reabrissem no dia seguinte ainda mais desregulados? Eu faço o que posso, tento passar a minha mensagem e no meu trato com as pessoas do meu círculo direto tento ser o mais aberto e justo possível. Fora isso, também tenho uma vida, estou dentro do sistema, o sistema o que me diz é que tenho de andar bem comportadinho, não fazer ondas e vou cheio de sorte se no fim do mês tiver dinheiro para as contas, porque almoços grátis há, por exemplo para as grandes empresas, para os bancos, para as companhias aéreas, que já se prepararam para receber bailouts chorudos, que os bónus dois chefes têm de ser pagos. Mas, para mim, quais almoços grátis, isso é que era bom. Portanto, não basta estarmos vigilantes e eu concordo, mas que mais podemos fazer?