14 fevereiro 2020

faça-se então um desenho (3) (e último)

 
Quando andava à procura de trabalhos do Vasco Gargalo para escrever os dois posts anteriores deparei com este, alusivo ao escândalo provocado pela abstenção de Joacine Katar Moreira no Parlamento relativamente ao voto apresentado pelo PCP de "condenação da nova agressão israelita a Gaza e da declaração da Administração Trump sobre os colonatos israelitas".

Este cartoon aparece em inúmeros sites de combate ao anti-semitismo, acompanhado por comentários irados. É óbvio que as pessoas não conheciam os factos a que o cartoon aludia, e fizeram uma interpretação primária, com base nas suas experiências pessoais e na convicção prévia de que Vasco Gargalo é anti-semita. Um desses críticos chegou a ler neste cartoon uma acusação de que os judeus torturam os negros.

Um trágico mal-entendido, que me fez sentir uma enorme empatia por Vasco Gargalo: cercado de ódio devido a interpretações erradas de um desenho que só faz sentido no contexto de um determinado momento da vida política portuguesa.

Também entendo facilmente que esse desenho tenha sido mal interpretado. É que - mais uma vez - insere-se numa construção imagética anti-semita por demais conhecida: a vítima no centro da imagem, rodeada por judeus. Exemplo disso são desenhos insinuando que os judeus faziam sacrifícios humanos, maltratavam os seus criados e eram sádicos com os animais.

 
(Representação do alegado ritual de sacrifício de Simão de Trento em 1475, 
da Crónica Mundial de Hartmann Schedel de 1493)

 (Página do livro "o Cogumelo Venenoso" - tradução para inglês aqui)

Apesar de não haver a menor intenção de anti-semitismo naquele cartoon, a imagem de uma negra vestida de palhaça (o símbolo do Livre é desconhecido no plano internacional) e crucificada numa estrela de David tem tudo para ser mal entendida e, pior, tem tudo para se instalar na memória colectiva do anti-semitismo como mais um exemplo da perfídia dos judeus.

(A sério: pobre Vasco Gargalo!)

Como evitar mal-entendidos como este?

O primeiro passo é tomar consciência de que estamos perante um povo que tem vivido com teorias de conspiração como libelo constante na sua história milenar - desde a morte de Jesus Cristo aos Protocolos dos Sábios de Sião, passando pela peste negra que seria resultado do envenenamento dos poços de água dos cristãos. E que, por isso mesmo, reage com particular sensibilidade a tudo o que possa parecer uma acusação.

O segundo passo é ter consciência de que todos os elementos alusivos ao povo judeu são material explosivo, e redobrar as cautelas.

Depois, fica com a consciência de cada artista decidir se quer correr o risco de criar material que possa enriquecer o arsenal dos anti-semitas, e de ser considerado como um deles.



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