Ontem fui ver Les Misérables, e por coincidência hoje o facebook recorda-me um texto do Joaquim Paulo Nogueira que partilhei há um ano, e que deixo no fim deste post.
O nome que deram ao filme em alemão foi: "die Wütenden" - "os furiosos".
Não gostei dessa tradução, porque desloca a perspectiva para fora daquilo que está na base do fenómeno. No princípio está a miséria - a miséria material que leva à miséria humana. A fúria vem depois, como uma "intifada": um corpo em tremor que sacode de si o intolerável.
Enquanto o filme se desenvolvia no ecrã, eu ia juntando às suas cenas o trágico caso da Amadora: a mulher espancada pelo polícia, o motorista do autocarro espancado por um grupo de homens.
A violência que alimenta a violência que alimenta a violência que alimenta a violência que -
Como evitar esta espiral negativa? O meu instinto de sobrevivência social grita-me que é preciso agir antes de se chegar ao ciclo infernal da violência física, é preciso ir ao encontro dos que vivem em condições miseráveis antes que a miséria se transforme em iniquidade estrutural. E lembra-me um episódio velho de trinta anos: quando me mudei para a Alemanha, a minha primeira professora de alemão comentou numa das aulas que era preciso impedir a entrada de mais imigrantes porque, por falta de casas, não havia condições para os alojar condignamente. "Isso é anti-social", disse ela.
Na altura achei-a egoísta e insensível. Hoje penso que havia nessa frase o reconhecimento de algo fundamental: uma sociedade que queira preservar a coexistência pacífica entre os grupos sociais precisa de assegurar que todos tenham condições de vida dignas. A miséria é o húmus da violência.
A solução, contudo, não é proibir a entrada de pessoas (pois se nem o muro de Berlim era intransponível!) mas recebê-las bem e oferecer-lhes a possibilidade de potenciar o melhor que têm para dar à sociedade na qual vivem.
Cada vez mais ouvimos o discurso populista contra "esses a quem o Estado dá tudo". Em primeiro lugar, o Estado "não dá tudo" - dá os mínimos, no cumprimento dos valores básicos inscritos tanto na Constituição portuguesa como no que é o entendimento do espaço cultural e social europeu. Recordemos que foram esses princípios europeus de defesa da dignidade humana e da igualdade de oportunidades que estiveram na base do imenso volume de subvenções europeias oferecidas a Portugal para nos permitir passar para um outro nível de desenvolvimento económico e social. Em segundo lugar, e dito de uma maneira que até as pessoas de Direita entendam: fica muito mais barato ao Estado dar aos pobres condições para conseguirem escapar à armadilha da miséria, do que garantir a segurança de todos quando a violência social se radica em grupos que vivem num contexto de falta de perspectivas e de desespero extremo.
[Quanto ao filme: comecei por me sentir incomodada com o nível relativamente fraco de alguns actores e com o perfil demasiado primário de alguns personagens, mas em algum momento tudo isso passou para segundo plano e dei comigo a entrar sem amarras naquele mundo de miséria e desespero. Muito forte, e com um excelente final.]
[Quanto ao filme: comecei por me sentir incomodada com o nível relativamente fraco de alguns actores e com o perfil demasiado primário de alguns personagens, mas em algum momento tudo isso passou para segundo plano e dei comigo a entrar sem amarras naquele mundo de miséria e desespero. Muito forte, e com um excelente final.]
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O texto do Joaquim Paulo Nogueira:
Setembro de 1994, Bairro da Jamaica | . Nunca esquecerei aqueles prédios. Tinham sido abandonados a meio do processo de construção. Já se passaram vinte e quatro anos e ainda tenho gravadas as imagens. Subi as escadas em cimento, cimento desnivelado, sem nenhuma guarda, corrimão. Tinha medo de cair, todo eu tremia. Não havia luz eléctrica nas escadas. A luz dentro das casas era de um gerador. Não havia água canalizada nem luz eléctrica. A caixa do inexistente elevador era um buraco de entulho onde se avolumavam os sacos do lixo que os moradores deitavam para lá. Não havia contentores do lixo. Ouviam-se e viam-se ratazanas entre o lixo. Muitas pessoas não queriam falar, tinham vergonha. Era uma reportagem hardcore. A certa altura uma mulher chama-me, pede-me para entrar, quer mostrar o seu filho. Mostra-me as suas orelhas, ratadas. Faltavam-lhes pequenos pedaços comidos pelas ratazanas. Ouvi aquelas pessoas todas, todas as que quiseram falar. Tinham-nos feito uma espera, logo à entrada, e o tema era esse mesmo: sentiam-se abandonados. Ouvi-os a todos, nas suas queixas gerais, nas suas reclamações contra a autarquia, contra o país. Eram de quinta, sexta linha, era assim que se sentiam. Eu sabia que não ia poder utilizar aquele material. Tinha dois minutos e pouco para contar a história. À minha roda tinha sempre um grupo de crianças. Quando já tinha recolhido todos aqueles depoimentos que era suposto ter recolhido, a Praça Pública era um programa que dando voz vivia das vozes, virei-me para o repórter de imagem e disse:"- Preciso de fazer uma coisa com os miúdos". Queria acabar com eles. Tudo aquilo que via me angustiava, estava tão ao pé do choro, da comoção autêntica, mas não queria que aquilo fosse o que dali levava. Pedi então às crianças para me levarem ao lugar onde brincavam. Levaram-me a um terreno que ficaria uns cem metros afastado daquele pesadelo e falaram-me de uma outra realidade : o que é que era ir à escola onde se encontravam com outras crianças vindas de outros lugares. Falaram-me ali, naquele descampado que tinha uma árvore. Falaram-me da vergonha que tinham por viver ali, que tinham cuidado para fazer o caminho sozinhos para ninguém perceber que moravam ali . Falaram-me também dos seus sonhos, das suas brincadeiras e por momentos aí foram umas crianças normais. Sempre que hoje vejo as histórias em torno do Gheto da Jamaica ( era esse o título da notícia do Correio da Manhã que nos levou lá) estremeço. Passaram-se vinte e quatro anos e o bairro aumentou, tem mais pessoas, a tragédia continua.
( Entretanto: tragédia com fim à vista, o processo de realojamento já começou)
O texto do Joaquim Paulo Nogueira:
Setembro de 1994, Bairro da Jamaica | . Nunca esquecerei aqueles prédios. Tinham sido abandonados a meio do processo de construção. Já se passaram vinte e quatro anos e ainda tenho gravadas as imagens. Subi as escadas em cimento, cimento desnivelado, sem nenhuma guarda, corrimão. Tinha medo de cair, todo eu tremia. Não havia luz eléctrica nas escadas. A luz dentro das casas era de um gerador. Não havia água canalizada nem luz eléctrica. A caixa do inexistente elevador era um buraco de entulho onde se avolumavam os sacos do lixo que os moradores deitavam para lá. Não havia contentores do lixo. Ouviam-se e viam-se ratazanas entre o lixo. Muitas pessoas não queriam falar, tinham vergonha. Era uma reportagem hardcore. A certa altura uma mulher chama-me, pede-me para entrar, quer mostrar o seu filho. Mostra-me as suas orelhas, ratadas. Faltavam-lhes pequenos pedaços comidos pelas ratazanas. Ouvi aquelas pessoas todas, todas as que quiseram falar. Tinham-nos feito uma espera, logo à entrada, e o tema era esse mesmo: sentiam-se abandonados. Ouvi-os a todos, nas suas queixas gerais, nas suas reclamações contra a autarquia, contra o país. Eram de quinta, sexta linha, era assim que se sentiam. Eu sabia que não ia poder utilizar aquele material. Tinha dois minutos e pouco para contar a história. À minha roda tinha sempre um grupo de crianças. Quando já tinha recolhido todos aqueles depoimentos que era suposto ter recolhido, a Praça Pública era um programa que dando voz vivia das vozes, virei-me para o repórter de imagem e disse:"- Preciso de fazer uma coisa com os miúdos". Queria acabar com eles. Tudo aquilo que via me angustiava, estava tão ao pé do choro, da comoção autêntica, mas não queria que aquilo fosse o que dali levava. Pedi então às crianças para me levarem ao lugar onde brincavam. Levaram-me a um terreno que ficaria uns cem metros afastado daquele pesadelo e falaram-me de uma outra realidade : o que é que era ir à escola onde se encontravam com outras crianças vindas de outros lugares. Falaram-me ali, naquele descampado que tinha uma árvore. Falaram-me da vergonha que tinham por viver ali, que tinham cuidado para fazer o caminho sozinhos para ninguém perceber que moravam ali . Falaram-me também dos seus sonhos, das suas brincadeiras e por momentos aí foram umas crianças normais. Sempre que hoje vejo as histórias em torno do Gheto da Jamaica ( era esse o título da notícia do Correio da Manhã que nos levou lá) estremeço. Passaram-se vinte e quatro anos e o bairro aumentou, tem mais pessoas, a tragédia continua.
( Entretanto: tragédia com fim à vista, o processo de realojamento já começou)
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