11 novembro 2019

histórias do muro de Berlim no verão e no outono de 1989



(foto de autor desconhecido, fotografada numa das exposições comemorativas do 30º aniversário da queda do muro)


Este fim-de-semana o meu coro saiu de Berlim para preparar intensamente o concerto do Requiem de Mozart que vamos ter daqui a duas semanas. Estava fora de causa não participar nesta saída, mas aceitei contrariada. Logo na altura em que Berlim comemora os trinta anos da queda do muro!

Para não se perder tudo, sugeri que as pessoas se apresentassem dizendo não apenas o seu nome, mas também onde estavam no dia 9.11.1989. E depois regalei-me a ouvir as histórias deles: na fila para o jantar, no café, nos passeios, ao pequeno-almoço...

Tentando repetir de memória o que me contaram, começo pela cantora que na altura tinha cerca de cinquenta anos e vivia em Berlim Leste: um dos seus três filhos já estava na Alemanha ocidental, e a filha tentou também a sua sorte pela Hungria. Antes de partir, disse à mãe que não podia mexer nas poupanças que tinha no banco, para não levantar suspeitas, mas que mal desse sinal de estar em segurança a mãe devia ir buscar esse dinheiro e comprar aquele casaco muito caro com que sonhava há anos. E assim se fez. Passados uns tempos, a própria mãe começou a pensar ir juntar-se à filha. Mas sentia uma certa relutância, porque ainda tinha em Berlim Leste um filho e uma nora prestes a serem pais. Eles riram-se: "vai para o outro lado, até nos dá jeito ter uma avó que sabe bem aquilo de que precisamos, em vez de nos mandar farinha e outras palermices como fazem os outros parentes que lá temos". Ela pediu um visto para ir fazer férias na Hungria, combinou com a filha um ponto de encontro nesse país, e deu ao filho a televisão e outras coisas mais valiosas, porque sabia que o Estado ficaria com todo o recheio da casa. Na véspera de sair para as férias uma colega avisou-a em tom jovial que o chefe tinha comentado que ela ia à Hungria e não voltava. Soube ler nas entrelinhas - "eles estão de olho em ti!" - e meteu na mala apenas o indispensável para os dias de férias que estavam previstos na documentação. Conseguiu sair da Alemanha, encontrar-se com a filha que a viera buscar de carro, e pedir ajuda na Embaixada em Budapeste. Alguns dias mais tarde faziam parte de uma enorme coluna de autocarros que levava todas aquelas pessoas para a Áustria. Quando viram o helicóptero da imprensa por cima delas, a condutora acelerou quanto pôde para escapar ao grupo e às câmaras dos jornalistas. Como o seu carro era de marca ocidental e matrícula alemã, conseguiram passar sem serem filmadas nem entrevistadas. Não queriam nada disso.
Os primeiros tempos na Alemanha Ocidental foram muito duros. Ninguém lhe queria dar trabalho, e ela teve de aprender a jogar com regras novas. Quando finalmente arranjou um emprego - para o qual era claramente sobre qualificada - e um apartamento na casa de uma senhora de idade que queria ter por perto alguém de confiança com conhecimentos médicos, pensou que podia finalmente refazer a sua vida. Mas por pouco tempo. Os vizinhos começaram a comentar e criticar tudo o que ela fazia, e eram tão invasivos e verbalmente agressivos que ela rapidamente concluiu que tinha de sair dali o mais depressa possível.
Entretanto o muro caíra, mas ela não teve pressa de voltar a Berlim Leste. Sabia que os vizinhos e muitos dos seus conhecidos estavam ressentidos com ela por ter abandonado o barco de todos.
Entretanto, o seu apartamento em Berlim acabou por não ser esvaziado pelo Estado, mas pelo próprio filho. No verão de 1989 havia tantas dessas moradas abandonadas na RDA que o Estado não conseguia tratar de tudo. Ainda agora, trinta anos mais tarde, se calha de ela abrir um armário na casa do filho, depara com algumas das melhores louças que vieram da casa dela. "Mas nem pensar em pedir-lhes que mas devolvam!", rematou.

Umas semanas antes da sua fuga, outra colega do coro, na altura com 19 anos, decidiu acompanhar a mãe e o irmão na tentativa de passarem a fronteira da Hungria. Os pais eram divorciados, e a mãe proibiu-os de contarem ao pai. Na véspera da partida, este encontrou-se com os filhos para combinarem as férias que iam fazer uns dias mais tarde, e ela mentiu o melhor que pôde. Depois de se despedirem, passou a noite a chorar com vergonha daquela traição. Em Budapeste, pediram ajuda na Embaixada e foram enviados para um campo de acolhimento de pessoas em fuga, onde ficaram alguns dias. Uma manhã descobriram que em todos os carros da RDA havia um folheto no pára-brisas informando que ia haver junto à fronteira um piquenique para a paz. "Só pode ser uma armadilha da Stasi", pensaram eles, alarmados, e decidiram fugir quanto antes. Apenas com uma bússola e a roupa que tinham no corpo, atravessaram florestas e campos em busca da fronteira com a Áustria. Além de ser uma caminhada extenuante, temiam ser apanhados por polícias húngaros, feitos prisioneiros e repatriados. Finalmente conseguiram entrar na Áustria. A sensação de alívio deu rapidamente lugar à de indigência: "é horroroso estares num país estrangeiro e só teres de teu a roupa e os sapatos que levas". Telefonou ao pai, para contar onde estavam, mas ele já sabia: tinha-os visto na televisão.
Odiou a RFA. Um enorme choque cultural - e a sua sensação de estar no lado errado do mundo viria a reforçar-se quando foi passar umas semanas nos EUA, em Los Angeles. Sentia uma saudade enorme do pai e da vida que tinha sido a dela no Leste. Começou a meter os papéis para poder ir visitar o pai em Berlim Leste, mas recebia sempre resposta negativa. Até que - finalmente! - recebeu autorização para entrar na RDA, com data marcada para o dia 11 de Novembro.
No dia 9 de Novembro estava no seu apartamento em Berlim Ocidental, mas não foi para a rua. Ficou em casa, junto ao telefone, à espera que o pai lhe dissesse por onde ia entrar. Mas o pai ligou a um irmão seu, em vez de ligar aos filhos. De modo que ela passou a noite toda em casa, sempre à espera.
(Mas já lhe perdoou há muito.)

Mais algumas das histórias que me contaram:

O filho de uns amigos, que tinha 18 anos, e tentou atravessar sozinho a fronteira da Hungria. Conseguiu, mas quando chegou à Áustria ficou cheio de saudades dos amigos que deixara para trás, e - "coisas que se fazem aos 18 anos" - resolveu regressar. Foi aí que o apanharam, o prenderam e o repatriaram: para as longas garras da Stasi.

O marido de uma das minhas colegas de coro vivia em Kreuzberg e trabalhava em Wedding (ambos bairros de Berlim Ocidental). O muro obrigava-o a dar uma volta enorme pela cidade. Uns dias depois do 9 de Novembro, ele próprio rebentou uma porta no muro que ainda estava fechada, para poder ir trabalhar pelo caminho mais directo.

Duas pessoas do coro, da Alemanha Ocidental, não sabiam onde estavam nessa noite. Uma porque tinha um desgosto de amor tão grande que apagou todo o resto. Outra porque não captou o significado histórico do momento. Lembra-se bem onde estava quando começou o massacre de Tiannamen ou quando começou a primeira guerra do Golfo, mas não tem nenhuma ideia sobre o que estava a fazer no dia 9.11.1989.

Já outra, também de Berlim Ocidental, sabe muito bem: estava a dormir. No dia seguinte, ao acordar, o marido comentou que cheirava a Trabi. Ligaram o rádio, e foi assim que ficaram a saber.

Uma outra era estudante em Berlim Oriental. Soube da queda do muro, mas ficou em casa a estudar. "Primeiro, o dever!", comentou ela com um sorriso de auto-ironia. No dia seguinte estava na Universidade como habitualmente às oito da manhã, mas as salas estavam praticamente desertas. "Bem, sendo assim, vou também..." - e foi.

O testemunho mais inesperado e que mais me deu que pensar foi o de uma mulher de Berlim Leste que contou que no dia 9 de Novembro tinha a filhinha a dormir, e resolveu ficar em casa. No dia 10 de Novembro, que era sexta-feira, também não sentiu grande necessidade de ir espreitar o Ocidente. No dia 9, um casal conhecido dela deixara o filho de três anos em casa a dormir, e fora durante a noite ao outro lado. O miúdo acordou, viu-se sozinho, e saiu para a rua escura e deserta, para ir pedir ajuda a uma tia que morava umas casas à frente. Gagueja desde então. Ela e o marido só uns dias mais tarde atravessaram o muro. Foram recebidos por um grupo de pessoas de Berlim Ocidental que ofereciam bananas aos do Leste, e sentiu-se insultada. Como se eles não tivessem bananas do outro lado do muro, como se precisassem daquelas esmolas... "Como quem atira bananas aos macacos no zoo?", perguntei eu. "Ora, no zoo já eu me sentia há muito. Morava muito perto do muro, e sempre que ia com a minha mãe à padaria havia alguém do outro lado a espreitar-nos usando binóculos. A minha mãe comentava que faziam de nós macaquinhos no zoo."
Ouvia, e comecei a juntar peças: morava perto do muro - algo geralmente possível apenas para as pessoas mais fiéis ao regime -, não tinha vontade de ir espreitar o outro lado, e sentia como insulto o que os do Ocidente faziam...
Por outro lado, pensei no que eu própria fiz quando visitei Berlim na Páscoa de 1989: também eu observei despudoradamente as pessoas do outro lado. A imagem dos animais do zoo era muito certeira, e espelhava bem a minha atitude de então.

Algumas colegas de coro tentaram adivinhar quem era wessi e quem era ossi. Chegada a minha vez, decidiram: europeia!
Mas tive de as desenganar. Na Alemanha sou wessi. Tenho socialização de wessi, e tenho comportamento de wessi. Até sou uma daquelas pessoas que compraram na antiga RDA uma bela casa meio em ruínas, a arranjou e foi viver nela.

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Regressámos a Berlim ainda a tempo de passar pela Porta de Brandeburgo. O "céu sobre Berlim" estava muito mais baixo que quatro dias antes, e as pessoas andavam numa azáfama alegre a escrever a sua mensagem naquelas fitas.





3 comentários:

Catarina disse...

Gostei imenso de ler estes testemunhos. Deixou-me pensativa...Tantas coisas que tomamos como um dado aquirido...

Elisabete Sousa disse...

Gostei muito destes relatos. Está-me a fazer falta saber histórias e vivências dos alemães de Berlim Oriental. Gostaria também de saber porque neste momento há tanta extrema direita. Não me parece tão simples como me dizem que antigamente era regime totalitário, mas havia muitas pessoas pensantes não pertencendo ao partido.

Helena Araújo disse...

Parece-me que ninguém sabe ao certo.
Há dias li numa entrevista alguém queixar-se que para eles não há dinheiro, mas para os refugiados há.
A AfD tem sabido bem capitalizar esse ressentimento - ou até criá-lo aritificialmente. Mas há um número crescente de pessoas que acreditam nos valores fascistas. Não sei explicar.